domingo, 15 de dezembro de 2013

Snapshot

Cabelos que caem como memórias. Momentos violeta, que tentamos em vão, guardar na retina. Pedaços gagos de felicidade. De um licor que bebem os deuses em dias maiores. Dizem que hoje é dia de festim. De abraços e lágrimas forçadas. Pessoas que se agarram desesperadas ao cheiro amargo da despedida. Voltas? - murmuram, envergonhadas, pela ausência que lhes cobre os ombros pequenos. Folhas que repousam, cansadas, no chão de pedra. Violadas por pés apressados, cheios de nada. Que apagam as pegadas com que fugimos do óbvio. Corremos a pagar as dívidas que o país contraiu, bêbado de alegria e promessas. Futuros contraídos de infantil atrapalhação. E ainda assim, corremos, corremos a comprar pedaços de sorrisos. E se não pudermos? Se não pudermos trazer o pão, a água, o calor? E as crianças que nos rodeiam, cobram-nos as horas em que não são os nossos braços que as protegem. Do frio. Das exigências. Dos caminhos que escrevemos para elas. Foi tudo tão errado, e ainda assim, dizemos: - Estas são as nossas pegadas, terás que colocar o pé pequenino no espaço entre a areia e o mar. Na forma do pé. Deixar as asas esquecidas nas costas. Não foi a voar que perdemos o orgulho. Não foi a acatar que perdemos o chão. Não foi a dizer que não que perdemos a razão. Não foi a criar que perdemos o tempo. Não foi a abraçar que perdemos o tino. Não foi a amar que perdemos o corpo. Não foi a cantar que perdemos o brilho. Não foi a voar que perdemos a pátria. Sabemos tudo e não sabemos nada. Do outro. Do que se senta a nosso lado, do que chora de noite na angústia seca de quem não tem força para acordar amanhã. - - Sabemos tudo e nada sabemos. Dos corpos que se lançam no vazio. Dos olhos que perdem a capacidade de fotografar pedaços de alegria. Se o erro foi teu, se o erro foi meu, se o erro foi nosso. Se tudo sabemos e nada dizemos. Se nos desviamos, cansados de tanta tristeza, dos corpos que chovem do céu, embatem no chão. E apodrecem escondidos nas folhas. Não foi, certamente, a crescer que nos encolhemos. Não foi. Não, não foi. - - Por isso, minha criança, agarra nas asas e diz que não. Que não queres o mundo que temos para ti. As decisões que te impomos à partida. Agarra a arte. Ama, ama, ama tanto que te irá doer o coração, os limites a terem que se rasgar para te manter inteira. Amor que irá brotar dos teus olhos. Para o papel, para o ecrã, para a vida. Agarra as asas e voa. Não ponhas o pé onde queremos as tuas pegadas. Ensina os adultos que na infância se esqueceram das asas. Diz-lhes que existem caminhos, rumos, existem montanhas possíveis de escalar. E no outro lado, do outro lado, no lado que aprendemos a esquecer, estão as asas. Com que os corpos não voaram e embateram no chão. Sê, minha criança. Tudo o que quiseres, tudo o que puderes. Tudo o que consigas aprender. E mais ainda. Porque não foi a sermos nós próprios que se apagou a gana, o arrojo, a vontade. Se o erro foi teu. Se foi meu. Se foi nosso. Não adianta continuar a errar. O medo não é cor para o cinzento.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Prefácio

Sou prefácio de mim mesma, pomba branca. Repousada na sombra do leão. Serenidade escondida, vulcão apagado. Sou prefácio de mim mesma, eternidade esguia no bater da meia noite. Curiosidade sombria, planalto de angústia e poemas. Sou prefácio de mim mesma, beijo suave da noite. Grito abafado, lábios esquivos. Tela inacabada. Sou prefácio de mesma, música lírica, luz duma estrela distante. Fruto das circunstâncias, confluência do amor. Luar que beija a linha da água do mar. Sou prefácio de mim mesma, incógnita de um destino ingrato. Chuva de Verão, Sol de Inverno. Mistério envergonhado de um sonho de menina. Sou prefácio de mim mesma. Quero ser. Epílogo de uma lágrima que escorre pelo rosto. Renasce. Quero ser. Útero de uma vida esquecida. Quero ser. Força de uma vontade daninha. Estilhaço de uma vitória muda. Sou prefácio de mim mesma. Pele de uma mulher. Alma de uma fénix. Grito de um silêncio.

domingo, 1 de setembro de 2013

"Summertime Sadness"

O momento em que descobres que os monstros te lambem os poros por baixo da pele. A linha ténue que separa a loucura da sanidade. Um rasgo de genialidade, com que enganas o desespero. Convences o vazio que existem flores e verde num tempo diferente. Sorris um sorriso quebrado perante a negação da droga com que afogam as inseguranças. Pessoas que trilham a pedra que separa a varanda do infinito. Não conhecem o fim, o início. Não compreendem o motivo que os faz acordar todas as manhãs, corrompidos dos comprimidos com que valsaram com o sono. Os olhos injectados de insónia e de mágoa. Os químicos que os atiram num sono pesado, Violador. Que apaga a memória, que não deixa espaço para sonhos desbotados. Uma população trémula, faminta de deus, de sentido. Uma população que deixou de sonhar. O momento em que descobres os monstros que te sussurram no silêncio. Te murmuram ladainhas de dias em que te curvaste sobre ti mesmo, febril, os dedos vazios. As lágrimas suspensas a aguardar o estilhaço da alma, para devastarem a pele desgastada do rosto. O momento em que olhas os monstros nos olhos. Cegos. Em que aguardas que te estilhacem. Em que esperas as garras a segurarem o teu coração, até que te vergues de dor. O momento. O momento. O momento. Interminável. Minutos que se tornam horas, que se transmutam em eternidades. Passas a língua seca pelos lábios. Vês as línguas babosas suspensas dos dentes afiados. Não desvias o olhar. Ouves os corpos que se lançam das varandas. Que riem enquanto conhecem o fechar do pano num chão duro e implacável. Ouves as mães que choram a perda de filhos. Os políticos que esfregam as mãos com a ideia de mais uma guerra absurda. Mais um fogo posto que lambe as árvores tristes. Ouves mais um dia a abraçar a noite. Os monstros afastam-se devagar. Para que saibas que por hoje venceste. Uma luta interminável de vontades. Em que não existem vencedores e vencidos. Apenas pedaços de ti pendurados nas paredes do quarto escuro.

domingo, 14 de julho de 2013

Esquissos

As palavras secam-me nos dedos. Rostos que pairam sobre as minhas pálpebras trementes. Recordações que me cansam os lábios mudos. Os dias passam, fogem por entre as brumas do tempo. Deixam marcas profundas no coração que se apaga, finado. O fado doura os momentos em que a solidão me ensina a não chamar os nomes do passado. O destino quis-me aqui. Frágil e perpétua. Das lições, já decorei as verdades. Os ímpetos morrem-me na garganta, estreita. Já não há força que me traga até mim. A espaços, a revolta atravessa-me as feições fechadas. A espaços, apenas. As palavras, secam-me. Não há Deus, não há fé, não há esperança que me alicie o corpo macerado. Apenas fado, apenas palavras, apenas rostos. Lábios mudos. Frágil e ténue. Apenas silêncio branco por entre as letras, esquissos do quadro final da minha vida pequena.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Este mundo

Neste mundo em que o planeta gira e as pessoas julgam-se mutuamente, tudo nos parece banal. Pessoas que avaliam os lados de um quadrilátero quando a sua visão é somente redonda. Pessoas que ouvem seletivamente apenas as palavras que comprovam as suas teorias gastas. Neste mundo em que todas as noites, os corpos não descansam e se recolhem doridos numa cama dura. Corpos que se quedam como cartuchos de bala usados. Corpos que se inflamam de dor quando finalmente a coluna se acerta com a anca após dias de labuta. Neste mundo em que a música se perde, por entre todo o ruído branco. Ruído que nos martiriza até que tudo o que balbuciamos é sem sentido e estupidificado. Ruído que sodomiza os ouvidos de quem enfrenta uma luta diária. Neste mundo onde o amor se esquece por entre duas bebidas. Os dentes apodrecidos em sorrisos tortos. De quem pouco mais tem para esperar. Sorrisos que se desgastam pelas bermas das estradas, pelos degraus das escadas que ninguém sobe. Sorrisos que se diluem por entre o álcool com que se apagam as derrotas e os sonhos perdidos. Neste mundo onde as prioridades se invertem. E as regras deixam de ser claras, nada faz sentido. Regras que se dizem apenas para que as possamos quebrar por meros tostões. Almas que se vendem e se trocam por mais uma certeza mesquinha. Numa dança de cadeiras em que o último fica sempre sentado no chão e não na poltrona almejada. Neste mundo onde as crianças se abandonam. Negligenciadas, cheias de nada. Tempo que ninguém tem para dar. Crianças que choram nas noites escuras. Produto dos sonhos trocados por noites de perdição. Crianças que anseiam sorrisos e colo. (Tempo que ninguém tem para ceder). Neste mundo em que as cores desapareceram. E tudo é cinzento. Mesclado de coisa nenhuma. Não há força, não há futuro, não há esperança. Nem gana, nem rasgo, nem grito, nem impulsão. Nem explosão, nem travessão, nem exclamação. Não. Não há amanhã. Tempo. Neste mundo onde a estrada é apenas uma espiral recessiva de enganos. Onde as mãos se largam, suadas. Onde os dedos tremem de angústia. Os dias, longos. Tempo. Que não há. Ninguém tem. Nem os pais, nem as mães, nem as crianças, nem os velhos, nem os incautos. Neste mundo em que a canção se repete até decorarmos as letras encadeadas. A canção que nos acompanha, nas viagens claustrofóbicas dentro de nós. Pelos meandros da solidão. Canções intermináveis e suaves. Sozinhos, em posição fetal adormecemos. Tempo. Sonhos. Amanhã. (ninguém.)

terça-feira, 25 de junho de 2013

Ordem pré-definida

A noite cai-me sobre os ombros como um xaile sombrio.Silencia alguns dos monstros e alimenta tantos outros. Questiono-me. Qual a lição a aprender na rota dos abandonos e dos recomeços? De todas as ausências? Passo a língua áspera nos lábios ressequidos. Tenho sede de ti. As horas passam, lânguidas. Dentro da solidão não existe espaço para a partilha ingrata de pedaços de nós. Questiono-me. Quando a noite se quebra sobre ti, recordas o meu nome sedento? Observo-me ao espelho. Os olhos assombrados. Tenho sede de ti. Reconstruo a alma de dentro para fora. Trago-te, no peito cansado. Impaciente. E na tua voz, não existem memórias dos nossos sorrisos. Apenas pó. Questiono-me. Estarão todas as pessoas tão cheias de adeus, como eu? Bebo água para matar a sede que me consome e me ateia fogo. Tenho sede. De ti. Coloco pedaço a pedaço, numa ordem pré-definida os estilhaços do meu ser. Se os colocar da forma correta, de uma forma quase perfeita poderei enganar-me que estou inteira. Questiono-me. Em que momento no tempo, deixei de ser eu? Com os dedos desenho no lençol a curva do teu corpo. Tenho saudades. De ti.

domingo, 16 de junho de 2013

Mickey

Hoje, o meu coração pequenino parou de bater e com ele parte do meu coração e da minha alma ficam adormecidos. Não desaparecem, como não desaparece a imagem ternurenta do seu corpinho à minha espera na porta para me saudar todos os dias, sempre feliz. E é essa imagem que retenho na retina. Ele feliz, sempre meigo. O meu Mickey. O meu para sempre. Ontem e hoje e sempre. O amor infinito do seu coração pequenino. Que abre uma ausência profunda que nunca mais irá ser apagada. Mas sei que há-de chegar o dia em que os meus olhos já não ficarão rasos de lágrimas pela ternura infinita do meu pequenino. Nesse dia só ficará a lembrança tão doce de todos os momentos felizes que partilhámos. O seu amor incondicional. Eterno. Abençoado. O privilégio de o ter conquistado. E ele a mim. O meu Amor. O meu Mickey.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Estilhaços

Deixo sair o ar que retive dentro dos pulmões. Um ar quente que me engasgava a alma. Não quero correr para o amanhã. Não quero sentir que esperam de mim pedaços de carne que não sei dar. Trago o coração do lado de fora do peito. Vazio de esperança e sonhos. Fustigado pelos dias em que acordar era algo normal. Fustigado pelos dias em que as palavras eram flores e pedras de arremesso. Eram mais do que meras palavras. A solidão surge-me recta. Deixo sair o ar, e com ele a navalha que trago cravada nas costelas. Deixo que as recordações, o espaço, os dias, as noites me atravessem e finalmente sinto. Sinto tudo, com um furacão que varre as escolhas. Os ombros mais leves, o coração mais vazio, mais cansado, mais sensível e cru. Mas nada, nada, mesmo nada pode preencher-me enquanto o sangue se revolta dentro das veias. E tudo o que não é, tudo o que é a antítese, tudo o que é apenas uma promessa, irrompe de mim como um grito. Porque eu não quero. Não quero ser menos do que sou, sentir que nada em mim é certo, nada é vermelho, nada é lilás. Porque eu não vou conformar-me. Estilhaço as paredes, as linhas, as amarras, os limites, estilhaço as barreiras. E tudo o que é nada, tudo o que é tudo, tudo o que é certo e errado, e vermelho e lilás, tudo o que é um fim e e um recomeço, tudo o que me oprimia o peito, tudo o que me apertava a garganta volta a ser Eu. Deixo caírem-me as lágrimas pelo rosto. E nelas renasço. Deixo que a noite se abata sobre o meu corpo. Porque eu quero voltar a ser Eu.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Café com Natas Revisitado II

Viu-a sentar-se no mesmo café, na mesma mesa e ainda assim os ossos pareciam-lhe mais leves. - Gosto sempre quando sorris. Ilumina-te a alma. A tua beleza só é completa quando sorris. Como resposta ela sorriu-lhe sem reservas. - Recordas do tempo em que não podia sorrir sem sentir uma névoa de mágoa a cobrir-me o coração – perguntou ela enquanto levava a chávena de café aos lábios suaves. Imaginou-se a cobrir-lhe os lábios com os seus, com a fome que o consumia noite após noite. Uma fome que não deixava lugar a dúvidas. - Sim, recordo. Tento imaginar que esse foi um tempo que não irá voltar. Ela sorriu-lhe novamente. Falou-lhe do seu dia, das pequenas derrotas e das pequenas vitórias e dos objetivos traçados. Ele respondia-lhe, apenas metade da sua atenção nas palavras. Memorizava-lhe os gestos contidos, os olhos atentos, a forma graciosa como inclinava a cabeça quando estava curiosa. E ela era infinitamente curiosa. Deliciava-se com a forma quase infantil como ela ficava intrigada e bebia dos locais e das pessoas que os rodeavam. Quase sentia ciúme do que lhe roubava a atenção, das mil e uma maravilhas que a mantinham suspensa. Ouviu-se gargalhar várias vezes e surpreendeu-se com o som das suas próprias gargalhadas. Não era um homem de humores. Não era um homem de grandes paixões. Não era um homem de intensidades. E no entanto, ali estava ele. Extasiado com a pele branca dela, a forma como o seu rosto se iluminava sempre que se sentia feliz. E ele queria ser a fonte, o caminho de toda a sua felicidade. - Estás diferente – interrompeu-a suavemente. - Pareço-te diferente? – viu-a inclinar levemente a cabeça, deliciosamente intrigada – Estou mais leve. De resto, não me sinto assim tão diferente. Viu uma sombra a rasgar-lhe o rosto, como uma dúvida permanente, um cansaço sem resposta. - Pareces-me mais forte. Mais liberta. Ela passou a língua pelos lábios e ele sentiu uma vontade tão forte de a apertar contra o peito, que sentiu o coração contrair-se. Nunca tinha sequer imaginado que o desejo podia doer fisicamente. Ela doía-lhe. Em todos os aspetos. Mas era ela também a sua cura, o pensamento leve que o impelia a tornar-se mais e melhor para a manter protegida. Cobriu-lhe a mão pequenina e apertou levemente. - Se eu acordar amanhã e o Sol for mais claro, ainda estarás aqui quando a Noite voltar? – sussurrou ela. - Sempre. Hoje. Amanhã. Mesmo quando pensaste que não estava e não me vias. Estive sempre tão perto que bastaria estenderes a mão e irias encontrar-me.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Café com Natas Revisitado

Ele pousou a chávena na mesa enquanto a observava. Ela rodava a chávena quente nas mãos, enquanto as envolvia como quem envolve os segredos da alma translúcida. Perscrutou-lhe os dedos compridos que tentava aquecer em vão. Ouviram a chuva, durante longos momentos em silêncio. - Sentes que perdeste? – ele sentia o instinto de a segurar nos braços, protege-la de si própria. - Nunca sinto que perco – o sorriso era tão belo como o lembrava, mas havia algo diferente. Um trago de amargura que lhe arrastava os cantos dos lábios para baixo como uma derrota imanente que desmentia a voz segura com que o enganava. - Dirias então que aprendeste algo com a queda? - Aprendo sempre. Sempre que tropeço, sempre que algo é diferente do que queria que fosse. Não acredito no planeamento. O planeamento apenas permite que nos sintamos apoiados pela lógica das probabilidades. Ela largou a chávena no pires solitário. - És demasiado impetuosa. Existe mistério e bom senso em planearmos os nossos dias e os nossos passos. Existe verdade. - A única verdade é a que nos impele em frente. A que nos faz sorrir e ter vontade de acordar pela manhã – viu-a afastar uma madeixa rebelde do rosto que lhe assombrava as noites. - Nunca deixas de acreditar na instabilidade? Não sentes vontade de conter os impulsos? Evoluir? - Sinto. Mas também sei que mesmo com todo o planeamento, a verdadeira mudança ocorre numa explosão incontrolável. Só percebemos o impacto da mudança anos volvidos. E ainda assim, a mudança não pode ser contínua. Ele estendeu-lhe a mão serena e aguardou que ela lhe entregasse a mão inquieta. - Às vezes sinto que este mundo hipócrita não foi feito para sermos nós. Não pertenço aqui. - Nenhum de nós pertence. E ainda assim, surges-me mais calma do que antes. - Estou só mais quebrada. - Talvez. Mas pareces mais serena – acariciou-lhe a pele muda com os dedos pacientes – Estou aqui para ti. Estarei contigo no caminho mas tens que crescer. Transmutar-te. Existe felicidade onde nunca a procuraste. - Tenho medo. Nunca tenho medo. Apenas do medo. Mas tenho medo. De precisar. De aprender a acreditar que estarás sempre comigo. - Estarei – sorriu-lhe. - A solidão é a máscara com que cobri a criança que fui – os olhos dela eram enormes. O mundo inteiro fotografado pelas pestanas grossas. - Podes ser tu quando estás comigo. Não me assustam os teus ciclos. As tuas ânsias. - Posso perder-me. Nunca mais me encontrar – os dedos dela tremeram nas mãos dele com o frémito da fuga. - Não importa os recantos da vida que a tua alma procure para se esconder de mim. Irei sempre encontrar-te pelo cheiro doce do teu âmago. Ela encarou-o, num misto de vergonha e ternura. E ele soube que ela acreditou na força das palavras ditas e dos espaços entre elas.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Escada evolutiva

Fecho o livro. Nele sinto o teu cheiro. E a promessa de um futuro onde a posse não é material. A génese de um momento que se transmuta numa vida. Uma cura para a mente, um bálsamo para o coração gasto. Semicerro os olhos cansados e és tu que espreita num sorriso honesto. Escrevo-te para te tornar real, na entrega silenciosa do amor. Este é o próximo passo na evolução.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Pause

Na sequência dos dias que me fragilizam os ossos, vislumbro esperança. Cores vívidas e música suave que atenua a mágoa da alma. As palavras sábias da espiritualidade são um bálsamo para as feridas que saram com o tempo. A rebeldia que impele os meus atos surpreende-se com a capacidade permeável do ser humano de reerguer o seu corpo pequeno. A vida atraiçoa-nos uma e outra vez. No final do dia, procuramos as vozes conhecidas, o cansaço puído a vergar as arestas do timbre grave. Nos braços dos que amamos, inspiramos fundo. Amanhã outro dia, outra página em branco a aguardar que nela surjam linhas e cores. Imagens transfiguradas dos sonhos de Deus. Tentamos em vão prever quantas voltas teremos que cumprir, quantos mais exercícios sonolentos da nossa psique para que o Sol continue a nascer no nosso horizonte. They say it can’t rain all the time. Confundo as lembranças de hoje com as projecções do futuro onde quero repousar. Engano a mente, esbato os limites do tempo. Imploro-te que vigies a porta. Hoje não quero que ninguém rasgue as minhas frágeis tentativas de continuidade. Abraço o silêncio, onde tento que os gritos sejam esparsos. They say it can’t rain all the time.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Stardust

What if I was a star? Aguardo a libertação da noite. A ânsia que irá transmutar o nosso semblante. Tornar-nos mais reais e simultaneamente mais etéreos. Aguardo o momento em que a luz se esconde do nosso olhar Perscrutador. Intenso. Maior. Aguardo a verdade que queima sob a forma dos teus dedos. A máscara que se torna rarefeita nos minutos Que antecedem a Lua Branca. Cortejas a curiosidade impaciente do meu sorriso. Estreitas-me contra o teu peito robusto E sussurras-me ao ouvido palavras, sons guturais De posse e transparência. Aguardo o tempo que não é tempo quando o teu corpo Se transmuta num lobo cinza que percorre Os campos a meu lado. Que vigia os meus passos inseguros. Transportas-me a alma transbordante Para os locais mais recônditos do Inconsciente que une todas as almas humanas. Seduzes a mulher-criança-fortaleza, As mãos como garras nas minhas ancas. Enterras o rosto na curva do meu pescoço. És homem-fera-abismo. E tudo em ti é maior. Abandono-me na tua pele, aguardo o beijo eterno da noite. O coração cheio de certezas, de dúvidas, de sentimentos, De pensamentos, de tudo o que é humano e tudo o que é bestial. Somos noite, universo, matéria negra que cria matéria branca. Propósito que todos os dias dos nossos antepassados criaram. Linha contínua de angústia e prazer. Percorres-me a pele com a língua húmida. Dentro de nós uma chama que não morre. Uma chama que nos engole por dentro. Que cria e recria a ponte efémera que liga A carne ao coração, o olho à lágrima, o lábio ao sorriso, A mão à tua mão. O dia à noite, o Sol à Lua. O ontem ao amanhã. Nascemos dos arquétipos divinos onde tudo é luz e negrume. Aguardo que todo o sentimento me rasgue os poros, Me recrie e renasça. Mais eu. Mais intensa. Mais branca. Aguardo que o corpo se precipite no teu abismo E renasça em ti. Mais do que hoje. Mais do que imaginação. Mais do que sentimento, mais do que pensamento. Mais do que nascimento. Mais do que morte. Mais do que noite. Mais do que sonho e ânsia. Poema do poema ancestral. Música da música primordial. Carne da primeira carne. Sonho do momento perfeito. Perfeição da imperfeição. Todas as crenças em convergência, todos os deuses num ser, Todas as verdades numa verdade. What if I was a star?

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Saudades do Sol

O povo eleva-se através da poesia e da magnânima capacidade de ser. Portugal ouve o Sol pôr-se a preto e branco. As almas abandonam a pátria que as viu crescer em busca de si próprias e fugir à miséria à que a pequenez as condena. Na mala levam fado e Fernando Pessoa. Partem e deixam atrás de si raízes e pessoas. Quem fica, empobrece com as saudades de todos os que levaram partes de si. O Sol põe-se em todo o mundo ao mesmo tempo quando as saudades o tornam fosco.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Inverno

Estou sentada, no final de mais um dia onde nada cresce. Nada me acalma a dor que ameaça engolir-me o coração. Vejo imagens de futuros e lares que se desmoronam a meus pés. As pernas vergam-me o peso. Subitamente, o nojo sobe-me pela garganta e perco o Norte. Onde estás tu, afinal? Onde o sorriso que me fez acreditar que o dia amanhã pode ser mais quente. O Inverno arrasta-se e mata no ninho todos os pássaros acabados de nascer. Onde estou eu, afinal? Condenada a uma valsa de recomeços. De enganos, de armadilhas que me prendem os pés cansados. Ensanguentados de tantos dias em que nada cresce. Abate-se sobre o meu mundo, o Abismo. E a minha voz deixa de me devolver o Eco. O que existe afinal? Qual a recompensa que prometo ao meu corpo cansado para o fazer continuar, todos os dias? Pergunto-me vezes sem conta, qual a aposta que fiz com Deus. O que prometi em troca do meu sorriso? Onde estás tu, afinal? Deixo que as lágrimas mastiguem as linhas do meu rosto. E onde pensava existir um campo árido de mágoa escorre sal das minhas feridas. Abertas. Expostas. Deixadas tanto tempo sem uma palavra, sem uma música. E com as lágrimas que se alojam nos meus dedos trémulos, crio e recrio uma escada, um caminho. Finjo. Finjo crer que existe algo no fim dessa estrada. Finjo acreditar que sou eu, que me aceno no fim. Onde estás tu, afinal? A água turva do lago perpetua o som do silêncio com que cubro a carcaça do meu sonho.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Construo palavras. Rumos, caminhos, pontes de letras e pontos de exclamação. Através das palavras, trago a curiosidade. Semeiam-se os sorrisos e os planos. As pessoas abraçam-me. Aquecem-me o coração magoado. Aprendi a não ter medo. A arriscar, a caminhar um dia atrás do outro. A enfrentar a desesperança que nos tolda os movimentos. Aprendi a deixar tudo para trás e recomeçar tudo do zero. Aprendi que o medo apenas nos torna mais pequenos. Frágeis. Pequenas folhas a ser arrastadas pela força do vento. Sem que as nossas acções tenham qualquer eco. Uma linha condutora, em que o final somos nós serenos numa cama, a cabeça a repousar na almofada. Leve. Um meio sorriso nos lábios. A força de acreditar que amanhã o dia há-de ser um pouco melhor. Há-de ter mais sorrisos, mais força, mais fé. A força de saber que o Dia terá mais Noite.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Xaile

Na casa repousam os pedaços de vida com que vestimos os sonhos torpes. Onde estás tu, agora? As pessoas avançam, trabalham, labutam em busca de uma realização. E no fim do dia, fingem sorrir. Trazem nos bolsos um profundo vazio. Na noite, dobram os cansaços, perfeitamente dobrados. Colocam-nos na mesa de cabeceira, junto ao copo de água e dos sonhos por cumprir. Mergulham em sonos mal dormidos, Revisitam as angústias e os fados. Preenchem as paredes de retratos puidos. E quando a dor lhes dilacera o coração, roubam a arte dos cabides pendurados nas árvores. Quem sou eu, afinal? A louca, demasiado verdadeira para ser real. Queria saber cantar os poemas que enfeitam o percurso que me traz à casa. Onde adivinho o teu corpo. Vejo o teu vislumbre pelo canto do olho e percorro os quartos. Procuro-te nas fendas do branco, na escadaria do destino. As pessoas constroem países onde se quebram as rotinas. E no fim da noite, fingem acordar. Trazem nas pálpebras um profundo vazio. Erguem os corpos. Encaram de frente a amargura de profecias esquecidas. Das palavras nasce um xaile negro e vermelho. Perfumado de flores e amores. A tua voz ecoa pelas frinchas das portas. Recito poemas em que as sílabas são as letras do teu nome. Amor, amor, ternura dos meus dedos. As pessoas sentam-se junto à televisão e apagam os desgostos em mais um momento. Um buraco com que remendam a nódoa que lhes surge no canto da boca. A mediocridade lava-nos os pés. A vida é uma praia onde o mar revolto nos engana, nos arrasta com a força implacável de uma maré. Havemos de adormecer e acordar juntos, no suspiro de Deus. -

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Nascimento

Danço, livre, as pernas nuas e os pés a tocar a terra fria. A noite cobre-me a pele quente, enfeitiça-me o sorriso aberto. Vou mais longe, os dedos finos, as mãos que seguram o destino. O olhar agudo com que encaro a Lua. A noite trouxe a libertação da mágoa. De dia, teço, fio o chão, a garra com que te me rebelo. Sou Eu. Nem máscaras nem mentiras ocas. Avanço, firme. Os olhos já não me giram nas órbitas em busca da falha. A lógica já não me escraviza o corpo cansado. Aprendo e reaprendo os limites do ser. Cresço, mudo, sorrio. Deixo que a noite traga a minha voz cálida. Danço, livre. As mãos a agarrar o ar frio que me desperta os sentidos. A soma de tudo o que fui. Rio. Num êxtase que só alcança quem sofreu, quem sangrou em dias mais pequenos. Existe magia, existe verdade, existe breu e luz, existem começos e fins. As linhas do tempo curvam-se perante a beleza de uma alma crua. Envolvem-me os pulsos. Enredam-se nos cabelos. Perfumam-me. Danço, livre. Num orgasmo de descoberta e realização. Aceito a mão fria que a noite me estende. Alta. Esbelta. Vejo os pés brancos por baixo do vestido negro pontuado de estrelas. A Noite sorri-me. Os dentes brancos, os lábios rubros. Faz-me rodopiar nos seus braços. As minhas gargalhadas ecoam nas árvores. Propagam-se pelo Lago. Sinto os lábios da Noite no meu pescoço. A sua língua húmida a deixar um rastro de prata. (morro e renasço todas as manhãs. fénix renascida por entre os escombros das palavras. cheia de significados e segredos. apaixonada pela loucura e pela coragem) Encosto a minha cabeça no ombro suave da Noite. Passeio os dedos pela alvura do seu colo. Esqueço tudo. Revivo tudo. Sou Eu. O tempo não existe. É uma mera armadilha que nos aprisiona as sinapses. Danço, livre. Rezo, canto, rio. Não faço qualquer som. Caio de joelhos na terra. Sinto os dedos da Noite enterrados nos meus ossos. Deito-me no chão duro. Sinto o fluir da terra, a seiva como sangue que alimenta. Através das pestanas espessas encaro a Lua. Sinto o cabelo negro da Noite enredado no meu. Ouço a sua respiração. Adormeço. Livre. Exausta. Para amanhã renascer. Maior. Agarrar a vida nas mãos. Fazer o Mundo girar. Sinto as asas nas costas, a quererem quebrar a barreira da carne. Sonho com as Fadas e o Mundo para lá do Mundo. A Noite sonha a meu lado.