domingo, 21 de abril de 2024

Carta

Alinho as dificuldades, as contrariedades, as necessidades,
recomendações, travessões, contradições.
Direcções equidistantes do que chamamos uma vida.
Um clamor ergue-se. Perceciono as vertigens,
os pólos invertidos.
Investidos, vestidos com que me mascaro.
Punhais dentro das gavetas a aguardarem
o seu destino. Famintos.
Devolve-me as palavras.
Os meus pés  não pisam o chão,
oblíqua.
Vítima, presa, carrasco.
Um balão de oxigénio num dia quente de Verão.
Uma onda, um portão, um caminho
sem passos. Uma linha sem orientação.

Chegou uma carta, era a minha escrita.
Do futuro, para ti.

O que dizia, não sei.
Talvez um poema do fim.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

O sentido do Caminho

Reencontro-me no silêncio, ideias difusas,
confusas, emergentes
atropelam-se por entre o sibilar da (des)rotina.
Se virar o olho para dentro
há um caldeirão fumegante de saber e de incongruências,
tão vasto que quase consigo acreditar que os mundos se fundem
e se confundem. As respostas e as perguntas misturadas
num fluxo milenar de sentiência.
O esforço, meu e dos outros, dos que viajam
na sombra dos dias, neste espaço entre o sagrado
e o profano, entre a ciência e Deus
transfigurado numa escada, uma corda
pulsante por onde nos chegam vibrações
do Universo e da multitude do Espaço e do Tempo.
Caminhos que percorremos sós, onde antes estiveram outros
e depois outros estarão, em busca, sempre em busca
da sonoridade, das linhas e dos travessões.
Da febre da criatividade contida, até rebentar
numa exigência gritante, fundamental, como se todos
os Homens e os que vieram antes dos Homens e os que virão depois dos
Homens, gritassem numa só voz, um uníssono
de procura. A insatisfação permanente no peito,
a mensagem pulsante que escrevemos em todos os poemas,
todos os livros, todos os ensaios. Nas peças de teatro,
nos filmes, nos papéis em que nos convertemos
emocionados, em que sentimos o que não é nosso,
é do Outro.
O sentido é sempre para lá do que é a distância de nós
até alguém, uma enfermidade benigna de saber,
mesmo sem acreditar. De sentir que podemos, devemos,
caminhemos, correremos, voaremos,
até ao fim e para lá do fim, de volta ao princípio,
de novo, hoje, amanhã, até que o pulmão páre,
uma e só uma travessia. No deserto, pelos oceanos de Estrelas,
até ao embrião e ao momento que a luz se cega nos olhos.

terça-feira, 18 de julho de 2023

Sal Amargo

De ti soube que percorres as estradas
em busca da liberdade que perdeste ao nascer.
Deixas pedaços de sombra como quem deixa poemas.
As palavras trazem-te sentidos que não queres
recordar. No vento esqueces as mágoas
e o (des)amor, um horizonte que te ilude
dia após dia, após dia.-

Cartas esvoaçam, fugidias, tremem.
Por vezes, à noite, quase podes sentir
o cabelo, o seio, o monte de Vénus,
a língua. Recordações? Ou a tua imaginação
a trazer-te os lábios de todas as mulheres que amaste
e as que juraste amar.

Perdem-se, esquecidas, nuas.

Escreves as palavras e apagas,
como quem apaga de si próprio o sangue,
o gene, o sal amargo dos dias.

quinta-feira, 2 de março de 2023

O meu corpo é uma prisão

 O meu corpo é uma prisão que se degenera
enquanto o tempo se eclipsa, o mundo
não se suspende quando a dor me
afoga, desinteressada.
Disassocio com os olhos vagos,
a estrada parece interminável,
médicos observam-me intrigados
com a infinidade de pequenos erros
que se atropelam para me envelhecer.
Percorro um corredor de gabinetes,
saio duma porta e entro noutra,
tomo um comprimido enquanto empurro
outra porta. A teia torna-se incrivelmente complexa
quando pequenos erros se juntam a outros erros,
emaranham a minha genética e tudo o que esteve
errado na minha vida. Cada grito que silenciei
entrelaça-se na probabilidade que a minha coluna
irá ceder antes de mim. Cada lágrima que me escorreu
pelo rosto, agregada ao sangue,
aos anticorpos que são anti. Anti o meu corpo.
Anti a minha genética. Um erro numa linha de produção,
um soluço da Humanidade, um engano
de Deus. Uma alma demasiado grande para
a fragilidade da pele.
Uma faca encostada à carótida enquanto respiro.

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Abraço

Acordo de noites mal dormidas
e tento esquecer o batimento
cardíaco que reverbera na ausência.
Um eco fantasmagórico dum futuro que nunca foi.
Uma impressão que apaguei dos lençóis.
Se pudesses, não me terias conhecido?
Se o Sol não brilhasse, se a Lua não fosse um astro.
Se tudo fosse linear e previsível.
Um poema perfeito, sem dor, sem mágoa,
sem sentimentos em explosão.
Se pudesses, não me quererias inverter
as cores? Curar os olhos febris?
Tolher-me as mãos com que aperto
a maçã de Adão na minha mão de Eva.
Se pudesses, nascerias noutro mundo,
outra pessoa, outro nome, outro Eu.
Outra, outra, outra?
Quem serias tu afinal, sem dor,
sem o teu sangue a escorrer das paredes
para cálices estilhaçados.
Quem, afinal?
Noutro mundo, talvez o teu coração
sinta o meu. E por segundos
batam em uníssono. Talvez
estejamos felizes e inteiros.
Nesse outro mundo, talvez existam crianças
nas nossas fotografias. A sorrirem,
suspensas no meu seio.
Talvez eu tenha as respostas
e não existam mais perguntas.
Talvez tenha aprendido a escrever
sem arrancar o coração
pelas costelas.
Eu só sou eu quando as palavras
estilhaçam a máscara, o sorriso,
rebentam as cicatrizes.
Se pudesses.
Se pudéssemos.
Se as noites nunca acabassem, se os silêncios
fossem gritos. E o mundo não fosse tão
estupidamente complicado.
Se pudesse, saía de dentro de mim
e deixava-me a secar,
até nada mais restar
de quem sou. E talvez aí renascesse
para além dos meus sonhos e desejos,
das minhas imperfeições,
dos meus ossos e da degeneração
lenta mas imparável do meu corpo.
Se pudesse, despia o meu corpo
só para me abraçar.

sábado, 26 de junho de 2021

(re)Encontro

Ele pousou o copo na mesa, perplexo. Não a imaginou ali. Imaginou-a em vários momentos, mas nunca fortuitamente. Ela sentou-se sem pedir licença. Invasiva. Parecia desenquadrada naquele ambiente e no entanto, continuava a segurar o olhar dele com o dela. Ele quis falar, mas teve receio de quebrar o feitiço que a trazia ali. "És o meu escritor favorito". Ele fitou-a e pensou o que responder a uma frase que lhe soava como um ataque. "Não tens escrito". "Não, não tenho". "Porquê?". Incisiva. "A escrita deixou de me fazer sentido". Ela inclinou levemente o rosto e ele viu dezenas de expressões a transmutar-lhe os traços. "Não acredito que tenhas abandonado as palavras". "Podemos dizer que as palavras é que me abandonaram". Os lábios dela formavam uma linha teimosa. Ele perguntou-se como ela acreditava que podia surgir duma névoa e perscrutar-lhe a alma, como se fosse um direito adquirido. "As palavras já não me fazem sentido" Os olhos dela perderam-se numa linha distante e ele sabia que ela estava a debater-se se o abria para procurar as palavras que ansiava. "Não tenho nada que te possa dar". "Recuso-me a acreditar que te tornaste mudo, que não tens textos a rasgaram-te os limites, recuso-me a acreditar!" Onde estiveste? - queria agarrá-la e sorver dela as palavras. Queria enterrar os dedos nos braços dela e trespassá-la com pontos de exclamação. Sentia a frase sufocá-lo, és feliz? És feliz? "Perdoa". Ela olhou-o, os lábios entreabriram-se para retorquir uma nova exigência mas suspenderam-se. Ele queria alcançar a mão dela e provar a si mesmo que não estava a delirar. Como se o tivesse pressentido, ela colocou as mãos perdidas no colo. Ficaram em silêncio e ele suprimiu a ânsia de a percorrer a pele. Ela parecia-lhe tão igual e simultaneamente tão diferente. Sabia-a, como duas linhas que correm paralelas até convergirem numa explosão e de novo se espelharem numa eternidade. "Pareces diferente" murmurou ela. "Pareço?" Ela sorriu. E ele sentiu. O frémito das palavras a insurgirem-se contra o peito. Queria dizer-lhe que se ela ficasse aqui, se ficasse tão perto que o ouvisse sussurrar, as palavras lhe renasceriam nos dedos. Queria fazer-lhe promessas que ambos sabiam que ele não tinha como cumprir. Queria despi-la e possuí-la, faminto de todas as noites em que dormiu sozinho. "Achas que algum dia voltarás a escrever?" "Duvido." "E o que faço com as saudades das tuas palavras?" "Arrumas numa gaveta onde as esqueças, dobradas" - apeteceu-lhe sorrir quando viu a postura corporal dela a mudar, como que a antever a desilusão. "Sabes que não funciona assim." "Sei." A pergunta queimava-lhe a língua e estremecia-lhe o coração - És feliz? Mas a boca permaneceu muda. Os olhos presos nos dela, inevitáveis. "E se eu tivesse ficado, terias escrito?" Sim, teria. Teria escrito e teria fingido que todos os poemas não eram de alguma forma odes ao veneno que era ela a correr-lhe nas veias. Queria prendê-la num abraço e extrair as palavras como uma corrente que amarra o coração. Teria escrito textos que apagaria quando a madrugada terminasse e com ela o feitiço do corpo nu dela nos lençóis. Teria imaginado enredos cujo final seria sempre uma ausência. Ele não sabia ficar. Mas isso não impedia a fome que o impelia a agarrar o coração dela com as mãos e apertá-lo até o quebrar em pedaços que nunca mais seriam encaixados da mesma forma. "Não queres mesmo que responda a isso". "É melhor não". Viu-a levantar-se, o rosto escondido em brumas. Queria pedir-lhe que ficasse, que se deitasse nua nos lençóis até que as palavras lhe brotassem do peito. Queria dizer-lhe que todos os poemas eram um mesmo poema. Queria aprender a ficar. Quando a noite findou perguntou-se se ela tinha estado mesmo sentada ali ou se a tinha sonhado.

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Simplicidade

Procuro palavras simples que te expliquem a complexidade tremenda das cores a explodir no meu coração. Parecem efémeras, envergonhadas pela sinceridade nua do olhar. Poderia criar todas as metáforas, tantas figuras que se apropriassem do estilo mas não da luz que ilumina o meu sorriso enternecido a sorrir-te. (Pres)sinto todos os poemas, sussurros que me comovem o coração. E são ainda assim tão pouco, tão aquém das nuances de nós. Preenches os meus silêncios. Esqueço as palavras, preencho-me simplesmente de ti.