Ele pousou a chávena na mesa enquanto a observava. Ela rodava a chávena quente nas mãos, enquanto as envolvia como quem envolve os segredos da alma translúcida. Perscrutou-lhe os dedos compridos que tentava aquecer em vão. Ouviram a chuva, durante longos momentos em silêncio. - Sentes que perdeste? – ele sentia o instinto de a segurar nos braços, protege-la de si própria. - Nunca sinto que perco – o sorriso era tão belo como o lembrava, mas havia algo diferente. Um trago de amargura que lhe arrastava os cantos dos lábios para baixo como uma derrota imanente que desmentia a voz segura com que o enganava. - Dirias então que aprendeste algo com a queda? - Aprendo sempre. Sempre que tropeço, sempre que algo é diferente do que queria que fosse. Não acredito no planeamento. O planeamento apenas permite que nos sintamos apoiados pela lógica das probabilidades. Ela largou a chávena no pires solitário. - És demasiado impetuosa. Existe mistério e bom senso em planearmos os nossos dias e os nossos passos. Existe verdade. - A única verdade é a que nos impele em frente. A que nos faz sorrir e ter vontade de acordar pela manhã – viu-a afastar uma madeixa rebelde do rosto que lhe assombrava as noites. - Nunca deixas de acreditar na instabilidade? Não sentes vontade de conter os impulsos? Evoluir? - Sinto. Mas também sei que mesmo com todo o planeamento, a verdadeira mudança ocorre numa explosão incontrolável. Só percebemos o impacto da mudança anos volvidos. E ainda assim, a mudança não pode ser contínua. Ele estendeu-lhe a mão serena e aguardou que ela lhe entregasse a mão inquieta. - Às vezes sinto que este mundo hipócrita não foi feito para sermos nós. Não pertenço aqui. - Nenhum de nós pertence. E ainda assim, surges-me mais calma do que antes. - Estou só mais quebrada. - Talvez. Mas pareces mais serena – acariciou-lhe a pele muda com os dedos pacientes – Estou aqui para ti. Estarei contigo no caminho mas tens que crescer. Transmutar-te. Existe felicidade onde nunca a procuraste. - Tenho medo. Nunca tenho medo. Apenas do medo. Mas tenho medo. De precisar. De aprender a acreditar que estarás sempre comigo. - Estarei – sorriu-lhe. - A solidão é a máscara com que cobri a criança que fui – os olhos dela eram enormes. O mundo inteiro fotografado pelas pestanas grossas. - Podes ser tu quando estás comigo. Não me assustam os teus ciclos. As tuas ânsias. - Posso perder-me. Nunca mais me encontrar – os dedos dela tremeram nas mãos dele com o frémito da fuga. - Não importa os recantos da vida que a tua alma procure para se esconder de mim. Irei sempre encontrar-te pelo cheiro doce do teu âmago. Ela encarou-o, num misto de vergonha e ternura. E ele soube que ela acreditou na força das palavras ditas e dos espaços entre elas.
quarta-feira, 1 de maio de 2013
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1 Comment:
Querida Sílvia
Sempre a admirar a tua escrita! E, através dela, a mulher!
Beijo
Daniel
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