Cabelos que caem como memórias. Momentos violeta, que tentamos em vão, guardar na retina. Pedaços gagos de felicidade. De um licor que bebem os deuses em dias maiores. Dizem que hoje é dia de festim. De abraços e lágrimas forçadas. Pessoas que se agarram desesperadas ao cheiro amargo da despedida. Voltas? - murmuram, envergonhadas, pela ausência que lhes cobre os ombros pequenos. Folhas que repousam, cansadas, no chão de pedra. Violadas por pés apressados, cheios de nada. Que apagam as pegadas com que fugimos do óbvio. Corremos a pagar as dívidas que o país contraiu, bêbado de alegria e promessas. Futuros contraídos de infantil atrapalhação. E ainda assim, corremos, corremos a comprar pedaços de sorrisos. E se não pudermos? Se não pudermos trazer o pão, a água, o calor? E as crianças que nos rodeiam, cobram-nos as horas em que não são os nossos braços que as protegem. Do frio. Das exigências. Dos caminhos que escrevemos para elas. Foi tudo tão errado, e ainda assim, dizemos: - Estas são as nossas pegadas, terás que colocar o pé pequenino no espaço entre a areia e o mar. Na forma do pé. Deixar as asas esquecidas nas costas. Não foi a voar que perdemos o orgulho. Não foi a acatar que perdemos o chão. Não foi a dizer que não que perdemos a razão. Não foi a criar que perdemos o tempo. Não foi a abraçar que perdemos o tino. Não foi a amar que perdemos o corpo. Não foi a cantar que perdemos o brilho. Não foi a voar que perdemos a pátria. Sabemos tudo e não sabemos nada. Do outro. Do que se senta a nosso lado, do que chora de noite na angústia seca de quem não tem força para acordar amanhã. - - Sabemos tudo e nada sabemos. Dos corpos que se lançam no vazio. Dos olhos que perdem a capacidade de fotografar pedaços de alegria. Se o erro foi teu, se o erro foi meu, se o erro foi nosso. Se tudo sabemos e nada dizemos. Se nos desviamos, cansados de tanta tristeza, dos corpos que chovem do céu, embatem no chão. E apodrecem escondidos nas folhas. Não foi, certamente, a crescer que nos encolhemos. Não foi. Não, não foi. - - Por isso, minha criança, agarra nas asas e diz que não. Que não queres o mundo que temos para ti. As decisões que te impomos à partida. Agarra a arte. Ama, ama, ama tanto que te irá doer o coração, os limites a terem que se rasgar para te manter inteira. Amor que irá brotar dos teus olhos. Para o papel, para o ecrã, para a vida. Agarra as asas e voa. Não ponhas o pé onde queremos as tuas pegadas. Ensina os adultos que na infância se esqueceram das asas. Diz-lhes que existem caminhos, rumos, existem montanhas possíveis de escalar. E no outro lado, do outro lado, no lado que aprendemos a esquecer, estão as asas. Com que os corpos não voaram e embateram no chão. Sê, minha criança. Tudo o que quiseres, tudo o que puderes. Tudo o que consigas aprender. E mais ainda. Porque não foi a sermos nós próprios que se apagou a gana, o arrojo, a vontade. Se o erro foi teu. Se foi meu. Se foi nosso. Não adianta continuar a errar. O medo não é cor para o cinzento.
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2 Comments:
Parece que adivinhas colocando marcos no tempo... mas é intemporalmente bom te ler.
Eu nem tenho palavras pra dizer o quanto calam estas palavras. Impressionante a sua alma.
http://serpentestrela.blogspot.pt/
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