terça-feira, 24 de junho de 2014

Sonho de uma noite de Verão

A chuva convida à nostalgia e sento o corpo mudo no chão de madeira, debruçada no baú das memórias. Sorrio imperceptivelmente, enquanto retiro uma fotografia desbotada. Vejo-me, quase mulher, o sorriso menino-maduro como uma afronta, desenhado nos lábios. O corpo recostado, sereno, antes de inúmeras batalhas e após tantas outras. Ouço uma música longe. Melodias de outras eras, outros amores e desamores. Tantas escolhas e angústias que atravessaram o meu coração. E delas, renasci, nas asas uma frase. Vejo outra fotografia tímida. O vestido de linho esvoaça ao vento, assim como o cabelo comprido que esconde as linhas do rosto, que anseiam os teus dedos longos. Toco a imagem, com os dedos trémulos, como se fossem os teus. Sorrio. O mesmo sorriso-afronta. Com que encaro o mundo, com que desarmo o mundo. Dia após dia, após dia. Batalha após batalha. Outra fotografia, e estou numa praia perdida na memória. Seguro as mãos pequeninas do meu irmão-sol. Seguro-o, firme. "Estou aqui", pareço sussurrar-lhe. Procuro fotografias das minhas irmãs, pedaços da minha alma. Procuro-as, um vazio a soçobrar-me a tristeza. Não as encontro, apenas a memória feliz das noites em que dormi abraçada nos seus corpos magros. Mas sei-as agora, aqui, comigo. E a chuva amacia a mágoa. Vejo-a. A fotografia da minha outra irmã, capturada por mim, numa tarde de cumplicidades. Sorri-me, um meio sorriso de quem quer desabrochar. Ficou assim, suspensa em mim. Resguardada para a eternidade. Sinto uma lágrima descer-me o rosto, morrer no lábio. Foram tantas as tarde que não vivi onde queria. A chuva continua a cair lá fora, mas aqui já não cheira a terra molhada. Sinto o teu cheiro. Não ouso mover-me, não quero assustar-te. Há muito tempo que não via o teu sorriso e os teus olhos enormes. Pousas a mão delicada no meu ombro. Sinto outra lágrima fugir, teimosa, dos meus olhos castanhos. Tens os teus presos em mim. Não digo uma palavra. Mostro-te as fotografias. A alma nua, exposta. Pousas a cabeça no meu ombro. Há tanto tempo que não te sabia aqui. O teu rosto, ainda infantil, já tão teu. Murmuras ao meu ouvido - não chores. Pouso a minha mão sobre a tua, no meu ombro. Tenho um mar de lágrimas escondidas nos olhos. Quero ficar aqui contigo - dizes-me, menino. Trago-te devagarinho pela mão, para te sentares perto de mim. Sinto que um dia vou ter o coração dilacerado - dizes-me. Nesse dia, vais amar-me? Como agora? - finalmente, olho-te. Pareces frágil, tu, menino, sentado a meu lado. Os olhos grandes, com mares revoltos e lagos serenos e a chuva a refletirem-se nas íris. Sinto que um dia, vou esconder-me de ti - dizes-me. Não entendo porquê, eu não quero realmente esconder-me de ti, pois não? Faço-te festas no cabelo e no rosto e sorrio-te. Não, não queres realmente esconder-te de mim - respondo-te. É por isso que vieste. Que estás aqui. Não esqueças o teu coração - peço-te. Olhas-me, uma alma tão antiga como eu. Eu não quero esquecer-me de ti - dizes-me. Aninho-te no meu colo. Não vais esquecer-te de mim - prometo-te. Nunca. Adormeço contigo no colo, enquanto as lágrimas se misturam com a chuva. Foram tantos os perdões, tantos os erros, tantas lutas e a vida, a vida não devia ser tão difícil. Acordo e não estás comigo. Certamente foste brincar junto das folhas caídas de Outono. Na nossa casa, as Estações não se obedecem a regras. Amor? - sobressalto-me ao som da tua voz, não tu-menino. Tu. Observas-me, cansado. Subitamente envergonhado. Aguardo que me digas que te enganaste, que a palavra te fira de morte, que me digas que existem vários significados para a palavra amor. Mas não dizes. Observas-me apenas. Os ombros caídos. Enlaço o teu pescoço, escondo o rosto no meu ombro. Há pouco, pareceu-me ver-me, menino - sussuras. Deve ter sido um sonho - os teus olhos escurecem na noite. Quedo-me silenciosa, nos teus braços. Não te esqueças do teu coração - sussurro-te. Está adormecido - respondes-me e lanças um olhar vazio para a porta entreaberta. Não te esqueças - e cubro os teus lábios com os dedos. Não te esqueças.

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