terça-feira, 14 de julho de 2009

Verde

Os caminhos de ferro amarram-me o coração
e todas as ausências que iniciaram no teu abandono.
Era ainda menina, era ainda pura, era ainda uma promessa
e já os teus pés te levavam numa outra direcção oposta
à que te trazia ao meu sorriso. Depois de ti, todos os abandonos
foram previsíveis e menores. Posso visualizar-te,
perdido, a olhar o rio que banhou as tuas escolhas
que era de água e hoje é de sangue.
Posso imaginar-te os olhos verdes ainda tão cheios
de lágrimas e humanidade. Qual foi afinal a escolha
que te trouxe até aqui? Qual o momento, a palavra,
o impulso, a mentira, a pedra que te desmoronou?
Qual foi o dia que amanheceu para te ver morrer a esperança,
pai? Imagino-te onde estás agora, finalmente culpado de todos
os erros, engodos, mentiras, desilusões e filhos
que geraste mas não amaste de verdade. Deus pousa-me
a mão no ombro, aqui, amarrada pela crueza da solidão
e do peso do silêncio que nos desnuda. Deus sussurra-me
suavemente escolhas que não são escolhas são imposições
da minha consciência e das provações que não sei
se consigo superar. Deus espera que seja forte o suficiente
para irromper pela sala onde esperas que te afaguem
a amargura e te diga, com a voz entrecortada, que um dia
alguém acreditou em ti, alguém esperou uma festa,
um afago, alguém quis acreditar que podias ser melhor
do que és na realidade, alguém quis amar-te.
Deus aguarda pacientemente que compreenda que
todo este desenrolar de desvarios nos trouxe
às margens do rio onde um dia morreste para o mundo
e para mim. E que te diga, simplesmente, que este é o
derradeiro momento. Que te diga, mesmo sabendo que
não vais ouvir, que estás perdido, tu perdeste-te pai, e nunca
nunca mais te vais encontrar, mesmo que a minha voz te ressoe
nos ouvidos no teu último suspiro. Que deixe que a voz me falhe
ao dizer-te que lamento tudo o que aconteceu desde a minha concepção.
Que lamento o dia em que te perdeste, que lamento que me tenhas
falhado tantas vezes, todos os dias que não viste se tinha febre,
todos os natais, aniversários, todas as lágrimas que não
apagaste, todos os minutos da minha vida que não soubeste
de mim. Que lamento sequer que um dia, do teu sangue,
corresse o meu sangue, que lamento, lamento profundamente
que sejas quem és, que nunca tenhas sido meu pai,
nem das minhas irmãs nem de ninguém que algum dia
tenhas concebido. Deus aguarda, pacientemente, que
arraste os meus pés até ti e te mostre, finalmente,
que este desfecho sempre foi teu. Que lamente, não
por pena ou caridade. Mas que lamente porque não te amo.
Não te amo, pai. Deus aguarda, pacientemente, que consiga
dizer-te que o amor que não te dei, morreu dentro de mim
e rasgou-me a alma. Deus aguarda, pacientemente,
que me sente em frente aos teus olhos verdes
e que da minha voz cansada saiam as palavras
que só eu te posso dizer. Não podes, simplesmente,
ter pena de ti próprio e de escolhas que fizeste em plena
consciência. Não podes, simplesmente, ignorar que és culpado
de todo o desamor que cobre o verde dos teus olhos.
Para que possas utilizar os dias que engolirão as noites
e as noites que surgirão nos dias, o tempo que não irá
ter paragens nem soluços para talvez, apenas talvez,
um talvez tão pequeno que nem me oprime o
coração, apenas e tão só talvez, possas olhar-te no espelho
e descobrir o verde dos teus olhos.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Redimensão

Nas notas do piano abandono cartas e serenidades.
No piano abandono-me, finalmente despida do mundano.
Dentro do coração existem ainda melodias
e palavras que foram tuas. No coração ainda coexistem
momentos em que sustenho a respiração
para ouvir a Lua murmurar.

Gosto de me imaginar estável e estagnada.
Superficialmente feliz com o passar lânguido dos dias,
das vozes que surgem do ruído da imensidão do tempo.
Gosto de me projectar no cansaço dos dias
e sorrir-me de longe, do findar de mais uma noite
em que tudo parece tão claro e tão digno.

(a verdade do piano descai-me dos ombros
para o colo onde morrem as cartas que não te escrevi,
os dias que não acordei nos teus braços,
os beijos que não depositei no teu rosto)

Gosto de me imaginar correcta num mundo
onde não conheço as linhas da tua mão.
Onde os caminhos do teu desespero não te
trazem até à minha pele.
Gosto de me imaginar franca e enraizada
no chão que não pisas.
Gosto de me imaginar num abismo
onde o teu amor não me consome o peito quebrado.

(escondo-te no piano, na mudez das teclas,
na placidez do esquecimento)

Gosto de me imaginar num quarto onde o teu corpo
não procure apagar-me noutros orgasmos.