segunda-feira, 31 de março de 2014

Princípio de mais um fim

Tinha os olhos como navalhas, as mãos vazias de um mundo maior. Tinha os braços cansados de tantas ausências, e a voz queimada de álcool que aquecia a noite escura. Tinha a pertença quebrada, e uma sensação de nada que lhe consumia as (des)esperanças. Era assim, uma percentagem pequena de tudo o que lhe compunha a língua e os lábios ressequidos. No mundo lá fora, quebravam-se famílias inacabadas e gerações inteiras de homens sem rumo. No espelho honesto, via o fogo que lhe tinha abandonado as pálpebras serenas. Um orgulho fugidio de não ser ele mesmo. Apenas uma mentira, uma meia verdade, um sonho perdido de alguém que nunca lhe irrompera vida dentro. Era no quarto que deitava o corpo ébrio, a mente enganada. Lágrimas cristalizadas que não soube chorar. Tinha uma névoa fina que lhe cobria o medo. Uma luz tremeluzente que se apagava dia após dia. Um capítulo final numa vida que nada era. Apenas uma promessa. Um momento no abraço de uma mãe. Tinha a visão toldada pela máscara com que escondia o verdadeiro sentimento. Uma manhã que lhe arrastava a vontade. Um vórtice de loucura a engolir a imagem que foi a bússola que o conduziu a parte nenhuma. No mundo lá fora, pessoas morriam todos os dias dentro de si mesmos. Os corpos podres, meras carcaças da fome profunda de um sentido. De um sentir que os faça viver. Apenas um suicídio moral, uma meia desistência, uma incapacidade de terminar a viagem de comboio que nos leva não sei bem onde. Sem sabermos de onde partimos, sem sabermos onde queremos chegar, sem sabermos o caminho, a linha que nos conduz. Tinha a cabeça a pender-lhe para o coração. Aquele era o princípio de mais um fim. Ainda não sabia, mas as mãos iam-lhe explodir de cor. Num recomeço, num quadro, num momento apenas. A máscara ia ficar esquecida num canto do quarto que o medo pintou de negrume.