quarta-feira, 16 de março de 2011

Lobo

Ela inclina-se, sussurra ao ouvido do lobo cinza-escuro, cinza-maduro, cinza-ternura, cinza-quase-negro.
Deixa descair a mão alva, a pele virgem de carinho. Distante, ouvem-se vozes, ondas de magnetismo que não a atingem. Sente o pêlo farto do lobo que a fita, seguro. Sorri-lhe, não com os lábios mas com os olhos, entreabre os lábios rubros onde desenha com a língua convites implícitos.
O capuz cobre-lhe o cabelo espesso e as esperanças. Lá fora, neva. O sorriso contagia-lhe os dedos esguios com que afaga o lobo enorme, deitado a seus pés. Sereno. E ainda assim, tão selvagem.
Cada lua que se ergue é uma escolha. A escolha de não se mover do trono onde repousa,
finalmente em casa. Existem milhares de cheiros, perfumes que lhe escorrem pela capa vermelha
e se quedam no ponto com que findou o caminho que a trouxe ao lar. E no silêncio ecoam vozes.
Vozes quebradas. Exigências. Juízos. Semi-cerra os olhos, cansada. Ergue-se devagar, no espaço
esvoaçam corvos, mensageiros de infortúnios que esqueceu. Ouve-o. O rosnar do lobo alpha.
Ecoa na noite-eternidade-libertação. Enlaça-o para o sentir rosnar no peito. Sabe que a qualquer momento ele poderá libertar-se e correr, rasgar, ferir. Deixa que o pelo lhe acaricie o rosto.
(quando o relógio se une nas batidas da meia-noite, ele toca-a com mãos humanas, lambe-lhe a pele fervente, apaga o exterior, irrompe dentro dela, deixa-a repleta, memórias, sonhos, o fim e o princípio, a língua que a cobre, os lábios e os dentes marfim. ele respira-lhe no ombro, percorre-a, entra dentro dela a tesão a unir as linhas com que a amarra, escrava da felicidade que lhe inspira a verdade da noite)
Rosna. Até que as vozes se afastam, trementes. E ela sorri, com os lábios, os olhos, as mãos.
O perigo da mandíbula que não a fere. A força do ímpeto do amor.
Oferece-lhe sangue, néctar, cálices de carinho. Oferece-se. Lobo... Comunica com e sem palavras.
A linguagem que criou para se escrever no coração da besta-homem-sonho.

terça-feira, 1 de março de 2011

O sonho antes do sonho

És a minha noite.
Escondo-te na bainha da alma, na curva do destino, no momento perfeito.
Felino. E a pertença surge implacável, não na angústia da perda, não no medo, não no
meu coração quebrado, na coluna vergada, não na mão que aperta a garganta.
Não. Surge na amplitude dos teus braços a rodear-me.
A afagar-me. Na respiração com que incendeias a pele.

És a minha noite.
Fazes-me sentido, nas palavras, na ausência de palavras.
Absorvo-te. O cheiro. O sorriso.
Em ti sou pequenina. Menina. Em ti sou imensa. Mulher.
Conheço-te o coração, a mente, o corpo.
Reconheço-te. Amplifico-te.

És a minha noite.
O meu sonho antes do sonho.
Transmutas o tempo.
Redefino-me em ti. Esbato as linhas que nos separam,
diluem-se as fronteiras.
Reflicto-me na sombra perfeita do teu âmago.

És a minha noite.