quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Set fire to the rain

As palavras estão retidas em mim.Paralizaram-me o maxilar e com ele os sorrisos, e com eles a paz com que cobri o coração.Abraço-te e estás aqui. És tu e proteges-me.O dia lá fora torna-se cinzento e a arteabandona-me todos os dias, por entre a crise e o dinheiro que nos escasseia.Por entre as minhas teimosias, o preço das escolhas.Não me arrependo de nenhuma.Eu sempre fui eu. Sempre fui fragmentada,sempre doeu viver. Sempre tive dores que se tornaram físicasdas palavras que rasgam o meu coração.As irmãs que deixaram o meu regaço,os amigos que me abandonaram finalmente saciadosda seiva que alimenta a coluna dorsalda minha mente.Os que se consideram mais espertos que todos os outros.O peso inconcebível das injustiças do dia a dia.Os dias que amanhecem e terminam e tudo o que fazemosé viver mais tempo nas empresas que albergam o nosso corpodo que em casa com os que amamos.E eles tornam-se aos poucos a nossa família.Subitamente conhecemo-nos, as fraquezas e as infantilidades.E aprendemos a amar os que trazemos connosco todos os dias sentados ao nosso lado.E ainda assim, às vezes a paz vem e a água traz-me atéà praia. Onde repouso os ossos cansados.Sempre tive doenças que me consumiram a alma.Sempre fiz escolhas. Tomei opções. Os perdõesconsumiram-me a saúde e por vezes, só por vezes, sinto que é o fim da linha. O dia amanhece e eu seique é tudo tão irrisório. Todo este desfilar de diasem que trabalhamos apenas para os poucos momentosem que os abraços surgem.E dói. Dói e a dor surge-me em lágrimas e sal,engole-me viva. E chove.Eu tive fé nas pessoas. Tive fé em mim. Eu tive féna força que me leva o corpo ao final.Aos poucos a poesia abandona-me por entre a tristezae o tempo que desaparece. Aos poucos é tudo impossível para quem trabalha diariamente.Aos poucos, a arte foge-me e é difícil manter ideais de justiçaquando tudo o que vemos é o aldrabar de um sistema.E as pessoas consomem-se. E a alma dói-me.Dói-me todos os dias. O medo tolda as pessoas.O medo é o final da linha. Quando nos roubarem o sorriso.Quando nos roubarem tudo.As palavras estão retidas no meu coração.Onde crescem e se magoam.A poesia desapareceu-me. Mas eu ainda sou eu. Por entre as nuvens. Mesmo quando chove.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Rewind

Rewind.
E tudo recomeça de novo.
Pé ante pé. E esperam que caia. Afinal não é o que faço melhor?
Ser a que deveria cair a todo o momento. Afinal,
não é o que esperam de mim?
A torta. A desalmada. A que é exasperada
e imprudente. A que se move, se vira, se revira, se revolta,
arranca todas as máscaras, a que rompe o silêncio.
Rewind.
Eras tu, o semblante carregado.
E os que esperam. Lambem as beiças.
Já me adivinham, morta, na estrada, as entranhas
rasgadas. A precisar. Sempre a precisar. Deles. De todos.
De uma mão, de uma mão que quando chega me aperta
o pescoço até sufocar. Os que exigem que seja menos
do que sou, que seja apenas mais um fogo fátuo.
Os que me cortam as asas, que mas recolhem junto da coluna vertebral
que se estilhaça.
Rewind.
E tudo recomeça. Outra vez. Outra vez. Outra vez.
Grito e arranho o rosto, arranho as pernas, deixo-as
sangrar o pânico que se me verte das veias
para o vácuo do coração. A pele
é demasiado peso nos meus ossos frágeis.
Rewind.
E é ela, a que pensa que descobriu o mistério da vida,
a que empatiza, a que vislumbra, a errada, a incauta.
Esfregam as mãos de regojizo apenas com a ideia
que tudo morra, que eu fique tolhida, soluçante.
As lágrimas que me ameaçam as serenidades.
E ainda assim não as verto.
O soluço ainda a crescer no peito
e eu tão cansada, tão cansada, e tudo me enoja.
O cheiro a carne queimada assombra
o meu quarto.
Rewind.
Dizem que ela caiu porque os joelhos lhe fraquejaram.
Dizem que era bela. Dizem que era horrenda. Dizem que
fodeu homens. Dizem que fodeu mulheres. Dizem que era
mágica, era uma bruxa, era apenas uma menina,
via mais do que existia e nos seus olhos existiam
borboletas e cadáveres. Dizem que era uma vírgula,
um ponto final, uma exclamação.
Dizem que tinha o fio do destino enredado
na garganta a sufocá-la. Dizem que soube
das incompetências, das mentiras bacocas,
do generalizado sentimento de paz podre.
Diz que era assim. Diz que era diferente,
era uma pulha. Ainda é. Diz que aguardamos
à frente, mais à frente.
Diz que ele era dela. Diz que o trazia de volta
ao seu regaço com ternuras esquecidas.
Rewind.
ARGHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH
Rewind.
Rewind.
Rewind.
"Sweet dreams are made of these
Who am I to disagree?
Travel the world and the seven seas
Everybody's looking for something
-
Some of them want to use you
Some of them want to get used by you
Some of them want to abuse you
Some of them want to be abused"
Rewind.
Arranco a pele e fico nua, exposta,
os ossos e a carne que ainda pulsa.
Os sonhos e as verdades.
Os montros que me devoram a mente
todos os dias, as questões, as filosofias,
as certezas e as impossibilidades.
Aguardo os corvos e sorrio.
Rewind.
"Runaway from me baby"
Rewind.
E a terra estremece, as nuvens aparecem.
E eu sou uma carcaça belíssima.
Que eles devoram.
Amanhã serei eu novamente.
Fénix renascida das cinzas do sangue
negro da vida e da morte.
Terei as mesmas certezas, as mesmas dúvidas,
o mesmo sorriso e o mesmo semblante.
Serei tão pulha como sempre.
Amanhã serei tão eu.
Ficarão novamente esfomeados.
Rewind.
Let's all fall down.
Alice's just around the corner.
Rewind.
Dizem que enlouqueceu,
dizem que a sanidade lhe fugiu um dia solarengo
e que brincava com zircónias
enquanto contava histórias de embalar.
Dizem que era um exagero vivo,
a arte com que se drogava
até não conseguir ver a preto e branco.
E toda ela eram cores e explosões.
Rewind.
"I'll get by.
I'll survive
When the world's crashing down
When I fall and hit the ground
I will turn myself around
Don't you try to stop me".
Don't. You. Try. To. Stop. Me.

domingo, 31 de julho de 2011

A luta

Um pé e uma pegada,
um primeiro passo, um grito, um estilhaço.
Somos pedaços pequenos da alma de Deus
que nos observa seco das nossas quezílias
mesquinhas. Deus finge-se adormecido
enquanto nos queimamos, vendemos tudo
o que temos, as mais pequenas linhas de prazer.
Ensinam-nos que o orgasmo não é verdadeiro
se o gritarmos aos vizinhos, ensinam-nos que o grito
está em comprarmos a roupa certa, está no relógio,
no produto novo. Está no consumo, agarramos tantas
coisas quanto conseguimos e sorrimos.
Estúpidos, somos estúpidos, somos todos
tão estúpidos e é isso que querem
enquanto se lavam nas nossas lágrimas.
No esforço do nosso trabalho.
As palavras com que rasgamos as mentalidades,
os sorrisos que negamos porque estamos demasiado
ensombrados para sorrir.
Matam-nos as vontades e os quereres,
dizem-nos finalmente que tudo o que somos é errado.
Padronizam-nos o pensar e a mente. Fazem-nos crer
que a libertação está na droga que nos aliena,
na bebida com que afogamos o dia que nos correu
tão mal, foda-se, tão mal.
Não aguentamos nem mais um passo,
nem mais uma facada nas costas,
nem mais um sorriso fingido que nos entregam
como uma maçã envenenada.
Que nos rebenta nos tímpanos.
Procuram-se noutros rostos, nas mãos que se encrispam.
Procuram-se na ternura inacabada.
E pensam-me tão distante e alienada como todos os outros.
Os que se drogam, os que morrem porque não querem estar vivos.
Os que se entregam finalmente e num último grito
lançam-se no abismo. Voltam à fonte. E é essa a liberdade
última ou não? A morte escolhida. A que inflingimos a nós próprios.
Mas é esse também o maior desrespeito
pela carne que nos cobre os ossos
e que eles mastigam, filhos da puta.
Genuínos filhos da puta
que nos amarram os pés, as mãos,
nos têem por uma trela.
Tudo é ruído. Desaprendemos o silêncio,
a paz que nasce numa onda
que não ameaça e é suave.
Desaprendemos a estar, a ver um filme, a ouvir a música
e afinal aquela que está pior que nós está bem fodida.
Não, não somos nós, não, não, não
não é o nosso sangue que alimenta os famintos,
os genuínos filhos da puta.
Não, não é o nosso suor que faz mover esta roda infinita.
Não é a nossa depressão que nos impede de nos revoltarmos.
Não é a nossa incapacidade de mudar, de gritar.
Não, não, não, aquela é que está mal
porque vergou, finalmente morreu. Finalmente
acabou. Mas ela criou algo. Algo que é intemporal.
Algo que é arte. Ela já não está para alimentar genuínos.
Mas eu não vou vergar. Não vou morrer, nem ser mártir.
A arte há-de continuar. A arte há-de existir. E eu hei-de gritar
até não ter voz. Hei-de ser uma fada em pele humana.
Hei-de quebrar os espelhos em que se refletem.
Eu ainda consigo continuar. A escolha existe.
E eu escolho todos os dias viver.
Rodeada de genuínos. Filhos da puta.
Mas não. Ainda não. Ainda não me quebraram.
O meu sorriso não nasce de nada que me tentam vender.
Eu só compro o que quero. E não compro a tua felicidade estúpida.
Não compro fingimentos. Não compro sorrisos amarelos.
Sozinhos somos pequenos. Sozinhos somos chamas
na escuridão. Mas juntos temos um movimento de mudança.
Muda. Grita. Rasga. Manda alguém foder.
Porque eu vejo. Eu ainda vejo. Eu ainda grito.
A minha carne alimenta os fracos, a minha ternura, o meu sorriso.
A alma, essa, é minha. E os sonhos. E as linhas vincadas
que traçam as arestas fodidas da minha personalidade.
Abraça-te. Amanhã é outro dia.
Mas é hoje que tens que lutar.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Mordaças

As pessoas arrastam o corpo amordaçado.
O dinheiro que não paga a alma que se
vende em pequenas prestações.
Têm-nos por uma trela.
Sufocam-nos o grito na garganta,
a raiva, a mágoa, a pressão
a sangrar-nos os ouvidos.
Vendemos a inocência, os sorrisos,
a paz, o tempo. Vendemos a ternura,
a luz, sugados pelo vórtice das expectativas.
Esperam-nos. Esperam que sejamos
sorriso, empatia, que sejamos a mão
no rosto. E somos. Somos tão grandes
que transbordamos fora do corpo,
rasgamos as barreiras e quebramos os ossos.
Somos um vórtice, a minha alma um monstro
que me devora por dentro.
Somos um movimento de negação
e afirmação, um ponto de exclamação
após infinitas reticências.
Pulsas. Ouço o batimento do teu coração.
Uma geração inteira a viver-te nas veias.
Falha-te a voz. O cansaço transluz a tua pele.
Vejo claramente. Todas as cores dentro de ti.
A vida como um filme, a lógica implacável
da consequência. Vivemos na extensão do abismo,
suspensos no momento da queda.
Precisamo-nos. O outro que tem as mesmas palavras,
os mesmos significados, as mesmas linhas de definição.
Epicentros de cataclismos que são as únicas verdades
que muitos conhecem. Pouso a mão no teu ombro.
Sereno a tua pulsação. Canalizo o teu olhar para mim.
E enquanto te observo, vês-me. A mesma matriz.
Escondo-me no silêncio que grita e apenas tu me vês
inteira. Sussurro-te no teu desespero, a minha voz a lamber-te
as impaciências. A minha mão a acariciar-te as cicatrizes.
À nossa volta, as pessoas arrastam a alma
muda. Tiraram-lhes a voz, a gana, o arrojo.
O medo que cessa toda a libertação.
Tenho medo do dia que terei medo.
Tenho medo do dia que não tenha forças para gritar.
Por mim e por ti. Por todos os que nos abraçam,
preenchidos de nada e por nós e pelas nossas linhas rectas.
Só tu me podes silenciar, a mão na boca
a sufocar-me o gemido.
Só tu podes engolir-me o grito,
num espasmo de prazer.
Abro-te o silêncio e o amor que vive na aceitação.
Vives. Pulsas. Explodes.
Sorrio-te.

domingo, 26 de junho de 2011

A minha lei

Esta ainda é a minha lei e continuará a ser: Arrepender-me apenas do que não faço. E esta é a minha única linha de continuidade.
Não sou contínua. Não sou linear. Não sou um ponto final. Não sou resignação.
Não sou conformidade, não sou fácil, não sou uma recta.
Eu sou um ciclo. Eu apenas continuo de onde parei.
Quando morrer, páro. Quando não tiver voz deixo de gritar. Quando me quebrarem, quando me vergarem.
Até esse momento eu sou eu.
Com tudo o que isso tem de branco e negro. E vermelho. E lilás.
Ama-me. Odeia-me. Despreza-me. Nega-me. Acolhe-me. Aceita-me.
Antes a solidão que a escravidão do ser. Antes o grito que a aceitação banal dos que se fingem.
Vergo quando perco as forças e caio no chão. Mas levanto-me. Reergo-me. Avanço. Apenas com a força da vontade.
Ainda não me quebraram os joelhos fracos. Ainda não me rastejam pelo chão. Não enquanto tiver força para respirar. Não enquanto me restar alguma dignidade.
Tudo o que quero é a memória de quem sou e a independência pequena que o trabalho das minhas mãos me traz.
Tudo o que quero é não precisar das mãos que nunca se estendem, das palavras que não se ouvem. Tudo o que quero é jamais precisar de quem
precisa de mim.
A vida tem sido puta comigo. Mas eu sou puta com a vida.
Querem caminhar caminhem a meu lado. Nunca comigo por uma trela. Nunca comigo com os olhos comidos pelo sal que me apagou a face.
As feridas do corpo saram. As da alma ficam marcadas a lume.
Sim. Termino onde começo. Em espiral. Eterna. Porque eu sou sempre a mesma. Sempre honesta. Sempre firme. Sempre os traços que me definem o rosto.
Não vaciles, amor. Não te movas. Não dês passos em falso. Mantém-te a meu lado. E eu manter-me-ei igual a mim própria. E isso é tudo o que posso prometer.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Matéria do teu coração

Vejo-te menino, sorrir-me por entre os dias que nos
esmagaram o coração. Vejo-te os olhos e as inocências
que guardaste no espaço que é nosso.
Sento-me a teu lado e estás cansado,
as cicatrizes ardem-te no peito.
Afago-te o cabelo e sorrio-te.
E o meu sorriso é o sorriso dos dias que me conhecias
e as tuas mãos eram as minhas mãos.
A matéria do teu coração
é a matéria da minha alma. Somos duas faces da mesma moeda.
E sei que, finalmente, nos perdoámos.
Vejo-te tão nitidamente como outrora.
E no fim de todos estes anos és tu que me habitas.
Sempre tu. E o meu amor é tão infinito como sempre foi.
Curei a alma e voltei a ser eu.
Vês-me. E toda eu sou tua. Sorrio-te.
Recuperei a minha luz. Não te forço. Não te violento.
Estou aqui e sou eu. E tu és o eco da minha luz.
Percorro as tuas cicatrizes com os dedos.
Amo-te hoje como sempre. As minhas palavras, tuas.
O meu sorriso, teu. A minha alma aos teus pés.
Eu apenas sou eu quando me olhas. Eu apenas luzo quando
és tu que me observas. Não me importam os outros,
as suas mãos e as suas dádivas. Apenas tu.
Porque apenas tu me compreendes. Apenas o teu sangue
corre no mesmo sentido que o meu.
Tu que me aceitas e me respeitas e me sabes.
Tu que nunca me largaste palavras duras.
Que permitiste que te violentasse
quando tinha o coração em ferida.
Tu que sempre estiveste aqui.
Mesmo quando existiam outros braços,
outras ternuras. Sempre me ouviste. Eram os teus braços
que cobriam os meus ombros quando chorava.
Era no teu regaço que me quebrava.
E renascia. E tu permitias. Sei hoje o preço que pagaste
para me ouvir chorar. Sei hoje o que fiz ao teu coração.
Sei hoje que sempre te deixei partir.
Renasci dentro do peito. De dentro para fora.
Voltei a ser a menina que te conquistou o coração.
Sorri-me meu amor. Sorri-me estejas onde estiveres,
sorri-me. Sê feliz. Comigo ou sem mim. Voa.
Estou aqui e não tenho medo. Não tenho espaço para ter
mais algum sentimento que não o amor.
Regressa a ti mesmo. Os teus nomes, fui eu que tos dei.
Ofereci-tos. São todos teus. Quando doer eu estou aqui.
Quando não conseguires voar eu levo-te nas minhas asas.
Quando quebrares eu ergo-te. Quando estiveres cansado
eu beijo os teus dedos. E se partires levas o meu coração contigo.
Tudo o que vejo és tu.
Sorri-me.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Ciclo

A vida é uma sucessão de retrocessos,
avanços e recuos onde todas as histórias
são uma mesma história. Todos os erros,
um mesmo erro. Todos os homens,
um mesmo homem. Poeira de cinzas
do que foi um dia o meu coração.
Renasço, pura, cada dia mais autêntica.
Não me minto, não me invento, não me reinvento.
Sou apenas eu, na imensidão que leva a linha ao
ponto final. Quase me perdi de mim mesma
nos anos que antecederam a noite.
Lembras-me? O sorriso inocente, a alma
e os sonhos, os amanhãs, a ternura que oferecia
a cada alma, tão intensa, tão genuína.
A força que impelia e aos poucos o vórtice
de medo, de quebra, a angústia que apagou
os meus olhos dos meus olhos.
Lembras-me? Todas as máscaras,
o silêncio, o grito, eu que não duvidava
que podia mudar o teu mundo.
Eu que alterei a rota das tuas marés.
E um dia rendi-me. E os meus olhos
não viam. E as minhas lágrimas não eram
salgadas. E o meu coração deixou de ser
vermelho. E as minhas mãos deixaram de estar
estendidas. E eu deixei de reconhecer-me.
As palavras deixaram de curar as ranhuras
do meu destino. O rosto mudou.
Morri dentro de mim todas as noites.
Recupero, agora, as palavras.
As inocências, a ternura, as mãos abertas.
Curo-me. Acordo. Voo. Rasgo. Forço. Abarco.
Agarra-me.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Inexistência de regras

Sufoco.
As pessoas esperam, anseiam, estabilizam-me.
Sufoco.
O excesso. O excesso de travessões,
palavras com que fujo à evidência do amanhã.
O cansaço que me verga as vontades e as febres.
Sufoco. Grito. Grito e estilhaço as máscaras.
Esta sou eu. Tão errada como sempre,
tão cheia de imperfeições, tão louca e aguda.
Um dia vou ser linear.
Um dia vou ser previsível.
Um dia vou deixar de ser mar e furacão e fogo.
Um dia não vou queimar.
Um dia vou deixar de prometer a mim mesma
que vai existir um dia.
Esta sou eu.
E eu sou a natureza, eu sou o espelho,
o horror, eu sou o espinho, o teu coração nu,
eu sou a cadência, o pulsar de um erro
perpetuado. Eu sou a inexistência de regras,
as asas abertas, o corpo em queda,
eu sou sempre eu, sempre igual, sempre fascinante.
Como fascinante é o veneno que nos faz alucinar.
Sufoco.
Um dia vou mandar tudo para o caralho.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Eternidade de metades

Deixo de sentir.
Páro de respirar.
Guardo o coração do outro lado do peito.
Deixas de existir em mim. Cresces noutro sentido,
enraízas-te em mulheres cujas linhas
em nada as compara com a explosão que é
a minha psique. Guardo as palavras
do outro lado do ponto final.
Hoje, finalmente, sei que tu já não és tu em mim.
Já não tenho perguntas.
Não existem espaços a preencherem as verdades.
Sei que nunca irás desaparecer.
Estarás sempre perto, as feridas a escorrerem sangue
que não sou eu que inflijo.
Sei que a tua pele continuará a ansiar a minha,
a fome de me veres nua prostrada a teus pés.
Mas é tão verdade que o teu desejo sou eu
como é verdade que o teu coração não me anseia.
Suspendo a minha alma cansada.
A vida desliza por mim a uma velocidade
estonteante. Não consigo sentir nem mais uma mágoa,
nem mais um impulso, nem mais uma ternura.
Os dias não esperam por nós, não aguardam que
estruture a capacidade de me relacionar com as pessoas.
Não me dão tréguas. Preciso da solidão,
preciso gritar, preciso tanto gritar.
Estilhaço os espelhos, as carências.
Vejo-me tão quebrada como sempre,
o futuro e uma inexistência de laços.
Deixo de sentir.
As palavras deixam de ser suficiente para sentir a ânsia
libertar-se, fluo e flutuo, angustio-me, tenho uma infinidade
de lágrimas e falhas.
Tudo o que tenho é o nada,
a privação emocional e tu que não estás aqui.
Ainda me precisas. E eu ainda te recordo
quando o meu peito quebra noite dentro.
Nunca mais te irei tocar.
E tu és a salvação e maldição que me condenou
a uma eternidade de metades.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Última Estação

Tacteio o espaço, o vácuo da tua ausência,
cega. Os dedos sentem a pele do teu rosto,
todas as palavras que nunca disseste,
todas as manhãs que não acordo e me deleito
com a perfeição das tuas pálpebras fechadas.
Estás tão perto e ainda assim,
não ouves a minha voz, não sentes os meus dedos
febris, não te pesam os beijos que poderia dar
noutros lábios, outros rostos que poderia percorrer.
Cega. E ainda assim, ofereço-te silêncio,
permito que partas. Cubro-me com a dignidade
que me sobra, a esperança vã que um dia o teu nome
não esteja tatuado na minha língua.
Imploro-te, imploro-te no desespero da noite
que me negues, que quebres tudo o que nos une,
que nos rasgues. Que digas de forma crua que não
te conheço, que não foi a pele do teu rosto que senti
a queimar-me a pele frágil dos dedos.
Tudo o que nos sobra é o silêncio que grita.
Estilhaça a máscara com que te encaro,
o sorriso que prostitui a minha tristeza.
Eu não quero fingir. Eu não quero.
Mas finjo. Por ti, para que te reencontres
onde não coexisto contigo.
Percorro os corredores e o meu passo
é firme. Escondo a angústia, escondo o sangue,
o sal, as cores. Desapareço, entro nas brumas
e deixo de ser eu e sou a Outra.
Guardo-me para a violação da noite,
para quando finalmente o corpo repousa
na angústia de te saber numa qualquer outra cama,
num qualquer outro orgasmo, consumo-me.
E em mim tudo grita e tudo é silêncio.
Quero-te aqui, quero-te tanto que o corpo se retrai
de dor, espasmos de impulsividade que me levam a
tactear o espaço, cega, a palavra atravessada
na garganta. Áspera, ácida, veneno,
veneno que me aspira os sonhos e os amanhãs.
Tenho os pés enraizados na minha dignidade.
Escorrem-me lágrimas dos olhos ferventes,
engulo-as, humilhada, coberta da vergonha
de não conseguir dar um passo que seja noutra direcção.
Todo o meu ímpeto queimado a manter-me
queda, os dedos finalmente mortos,
o olhar finalmente perdido,
as lágrimas finalmente secas,
a última estação e eu ainda na carruagem.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

A incondicionalidade do amor

A minha maior tragédia foram todos os homens que pensaram amar-me sem terem sequer a mais pequena noção do que é o amor.
Que sabem eles do amor incondicional que torna as tuas lágrimas nas minhas lágrimas? A tua dor na minha dor? A tua angústia na minha angústia?
Que sabem eles do fluxo que me faz sonhar o teu semblante quando estás longe? As tuas palavras que se semeiam na minha espinha?
Que sabem eles, afinal, da mão que nunca se consegue levar ao rosto que não numa carícia de ternura? De todos os perdões, todos os adeus, todos os momentos em que soube com a certeza implacável do destino que aceitarei sempre toda e qualquer decisão que impelir os teus actos.
Quem ama, não espezinha. Não insulta. Não abandona. Não parte sem olhar para trás. Não esquece. Não apaga. Não pensa que está melhor sem o outro.
Quem ama saberá sempre que está incompleto. Que faça o que fizer o amor nunca irá morrer. Quem ama sabe que faças o que fizeres, digas o que disseres, o amor é apenas porque sim. Mesmo se o deixares a secar no meu coração, ainda assim, ainda assim, meu amor, ele voltaria a renascer para ti tão intenso como no primeiro momento que me entreguei.
Que sabem eles do amor, quando sorriem com o meu vazio, quando aguardam que tropece, que caia, que me quebre, que me descubra sozinha dentro do arremesso do futuro.
Que sabem eles do amor, quando desistem ainda nem amanheceu, partem sem querer saber se respiro, se a pele ainda se mantém inteira, cosida, remendada.
Que sabem eles do amor, quando tudo o que pensam é na perda, na ausência, na expectativa que seja infeliz, que me inunde em lágrimas e torpor?
Que sabem eles de mim?
Mesmo quando te forço a partir eu olho para trás e tudo o que vejo és tu.
Mesmo quando sei que me destróis, que te destróis, que chegámos a um ponto sem retorno, que ficas melhor sem o teu porto seguro, que precisas que te impeça de me teres, mesmo quando concluo que precisamos que termine agora, mesmo assim, tudo o que quero é que sejas feliz.
Ainda que sem mim. Ainda que a tua felicidade seja longe, eu estarei sempre perto, sempre a garantir que não tropeças, que não te inundas de lágrimas, que não estás sozinho, nunca ficarás sozinho enquanto respirar.
Ainda que não ouças a minha voz. Ainda que não vejas o meu rosto. Ainda que eu espreite o teu sorriso de longe e não me ouças chegar e não me vejas partir. Ainda que o teu sorriso se vista do meu vazio.
Ainda assim. Se sorrires irei sorrir, se estiveres feliz, o meu coração irá ter alguma paz, se te souber inteiro.
E continuarei a amar-te. Mesmo que estejas longe. Porque o amor não termina. Não tem um fim. Tem apenas reticências.
A minha maior tragédia é saber que ninguém entende o meu amor por ti porque na realidade, todos os que dizem amar-me jamais o fizeram.
Amar dói. Amar exige do coração. Amar é incondicional. Amar é perdão e continuidade. Amar é tempo. É história. É partir e regressar. É dar mesmo quando não se recebe. É sorrir mesmo quando queremos chorar. É abraçar-te mesmo quando me magoaste, mesmo quando está tanto frio aqui.
Não preciso que me entendam. Não preciso que me aceitem. Nem sequer preciso que me respeitem. Preciso apenas e tão somente ver-te feliz.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

A escravidão do amor

Desperto.
Os olhos queimados de lágrimas ásperas que beijaram o coração
antes de se perderem na linha do rosto.
Tenho os pulsos amarrados à cama onde repousas à noite.
Observo-te, louca. Louca de amor e de pertença,
nua, entregue, rendida. Não há mais espaço fora do teu corpo,
não há outra pele, outro começo. Nada mais existe
para além do teu sorriso. És o perigo, a aresta, a inexistência
de limites, és o silêncio em que grito, és tu, sempre foste tu,
sempre serás tu, em mim.
Vejo-te respirar, imagino os sonhos que te inquietam o sono.
Dói respirar. Dói-me o amor que me rasga a pele,
que transborda para os lençóis, que escorrega para o chão.
Que inunda o quarto.
Nada mais tenho para te oferecer do que a minh'alma,
o corpo, nada mais tenho que eu mesma.
Incompleta. Partirás um dia. Em busca do outro lado
de ti próprio. Partirás um dia e isso quebra-me.
Imagino que terei a dignidade de não perseguir os teus passos,
que não aguardarei com a garganta sufocada que coloques os pés
nas pegadas que te levaram para longe e regresses.
Imagino o silêncio, o grito, o abandono.
Recordo os momentos em que não estavas. E sei,
que sempre soube que irias voltar. Nunca estiveste ausente.
Mesmo quando jurei a mim mesma não te conhecer.
Mesmo quando quis odiar-te com a mesma intensidade
com que te amo. Mesmo quando proibi os meus lábios
de proferirem o teu nome.
A linha do meu coração levará sempre aos teus lábios,
ao azul dos teus olhos. E menti. Menti a mim e a outros,
menti que não te amo, que não te quero, que não te desejo
com a intensidade da loucura. E com a mentira hipotequei
a dignidade, perdi-me de mim, fui outra, fui menos do que sou.
Finji-me, violei-me, virei-me do avesso.
Vejo-te e adivinho-te as ânsias. As perfeições. As imperfeições.
Estou amarrada às tuas pálpebras.
E hoje assumo o que sinto, o amor que tolda a visão,
que me dobra, me verga a vontade, a incondicionalidade feroz
do desejo, das minhas mãos na tua pele.
Não quero mais negar-me a verdade, o néctar
proibido que me fere os lábios.
Preciso que o tempo não corra. Que se eternize o momento
em que posso fitar-te, o semblante adormecido
a imobilizar-me a ternura.
Tudo o que sou. Tudo, meu amor. Tudo o que sou,
é teu. Até quando partires. Será sempre teu.
Escrava, boneca, puta, imensa, pequena,
frágil, intensa, maremoto, brisa,
menina, mulher, nua, a alma, o corpo, o coração,
tudo.

sábado, 23 de abril de 2011

Fingimento

Houve alturas em que a raiva inflamava as tuas partidas.
Em que sentia o sangue a ferver-me nas veias, a queimar-me, a impelir-me a fuga.
Nesses momentos, sentia que não sentia a tua partida. Convencia-me que nada mais restava,
nem mais uma palavra. Nem mais um sorriso, nem mais um regresso.
Hoje, o regaço é uma tela de lágrimas.
E o coração pára de bater. Das tuas outras partidas acreditei que ficava bem sem ti.
Tinha o peito cheio de esperança que era aquela a última vez de todas.
Tudo o que tenho agora é o nada.
A convicção plena que te amo hoje mais do que nunca.
E esse amor nunca te chegou. Tens o coração escravo dos futuros
com que cresceste, menino, apaixonado pela fotografia que te abria as asas
para voares. Não consigo iludir-me que não tenho a alma
do lado de fora da pele. O constante frémito de te trazer até mim.
Mas escolho não viver. Escolho não respirar. Cobrirei a campa
da tua ausência com o vestido de linho branco.
Finjo para os restantes as estratégias antigas.
Finjo que acredito que fico melhor sem o teu sorriso.
Sem poder desenhar o contorno do teu rosto com os dedos.
Finjo que é positivo. Finjo que fiz tudo. Finjo que amanheço
e anoiteço. Finjo que existe algo em mim que não és tu.

Sinto-te partir. Consciente que permiti. Que te deixei,
consciente que rasguei a alma para que sejas feliz.
Consciente que tenho lágrimas a roer-me a pele.
Que terei que as chorar infinitamente.
Que não consigo fingir que posso avançar, que posso ser feliz.
Em mim não existe esperança. Existe apenas a necessidade de te ver partir
e viveres a vida onde não coexisto com o teu sorriso.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

What if I had a time machine?

Interrogo-me muitas vezes o que faria se pudesse voltar atrás no tempo.
Quais as escolhas que faria diferentes. Se evitaria de conhecer certas pessoas, se teria aprofundado certas amizades. Se ficaram palavras por dizer. E quais foram. Se poderia ter feito mais. E melhor.
Numa fase da minha vida angustiei-me profundamente a pensar nos caminhos e nas bifurcações. Pensei e repensei, vi-me em todas as situações que me marcaram, decorei as linhas que me levaram até elas.
Ainda hoje o faço. Muito menos vezes, é certo. Mas ainda o faço. Hoje concluo que não teria feito escolhas diferentes. Sempre escolhi com a ideia que estava a fazer a escolha certa. Se não tivesse feito as opções que fiz hoje não seria quem sou.
Este último ano cresci. Aprendi. Mudei. Reencontrei-me. E existe alguma paz dentro de mim. Sei que fiz o que pude pelas pessoas que amei.
Por vezes fiz mesmo o que não podia. Não guardo remorsos. Tentei. Fiz o meu melhor. Escolhi o que me parecia certo, caí e ergui-me muitas vezes.
Reconciliei-me com as impossibilidades. Ainda me assombram de tempos a tempos mas não me toldam os movimentos como no passado.
Ainda me recordo menina e sei que muitas pessoas abusaram da minha inocência. Ainda me lembro com ternura e nostalgia e ainda assim sei que quem era ainda sou hoje, mas hoje defendo-me melhor, não me pesam tanto os erros e os enganos.
Disse as palavras, dei os abraços que soube dar. Hoje, com as mesmas circunstâncias teria tido atitudes muito iguais. Agi conforme pude e conforme sabia e não o fiz com o objectivo de magoar ninguém.
Recordo-me que tinha incertezas. E as pessoas que me rodeavam me vendiam certezas implacáveis, linhas rígidas com que devia definir as minhas acções. Hoje, sei que tenho algumas certezas e que estava certa em muitas coisas e as pessoas estão perdidas dentro de si próprias.
Por isso deixei de ouvir conselhos que não me servem.
Cada vez mais não tenho medo e nada me impede de avançar. Cada vez mais as palavras não me assustam. Cada vez mais sou eu própria.
Sempre fui intensa. Nunca vou mudar. Ainda amo quem sempre amei e isso não vai mudar. Sempre fui impulsiva e quebrada. Isso também não vai mudar.
As únicas mudanças que operaram em mim foram para corrigir as rotas erróneas que me afastavam do meu Eu.
E ainda assim há momentos em que o Sol é tão claro, que me pergunto se estou a sonhar. Os olhos vêem mais hoje.
Estive submersa em dilemas e questões, em debates internos, em tentativas e erro. Mas foi o mais correcto. Precisava desses caminhos para chegar até aqui. Precisava tentar, precisava quebrar-me, precisava iludir-me, precisava descobrir a verdade.
Sei que poderia ter feito outras escolhas. Talvez tivessem encurtado caminhos. No entanto, apenas o sei porque não as fiz. Se as tivesse feito talvez o caminho fosse mais curto mas também talvez não me trouxesse com a aprendizagem necessária.
Amadureci. E gosto do que sou. Cada vez mais. Cada vez me sinto mais autêntica.
E ainda assim, sou tua. Porque escolho. Escolho dar-te a alma, o coração aberto. Talvez escolhas partir um dia. E se esse dia chegar sei que parte de mim morrerá para sempre. A parte de mim que apenas vive em ti.
Talvez o faças. Mas enquanto estiveres aqui, escolho ser tua. Todos os dias. Porque foi assim que me defini e hoje, fazes-me tanto sentido como me fizeste um dia, quando te aprendi.
Sei que ainda não te reencontraste e continuas perdido dentro de ti. Mas quero estar presente quando te encontrares. Mesmo que isso implique perder-te para sempre.
Hoje, sou mais eu. E tu fazes parte do meu Eu.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Lobo

Ela inclina-se, sussurra ao ouvido do lobo cinza-escuro, cinza-maduro, cinza-ternura, cinza-quase-negro.
Deixa descair a mão alva, a pele virgem de carinho. Distante, ouvem-se vozes, ondas de magnetismo que não a atingem. Sente o pêlo farto do lobo que a fita, seguro. Sorri-lhe, não com os lábios mas com os olhos, entreabre os lábios rubros onde desenha com a língua convites implícitos.
O capuz cobre-lhe o cabelo espesso e as esperanças. Lá fora, neva. O sorriso contagia-lhe os dedos esguios com que afaga o lobo enorme, deitado a seus pés. Sereno. E ainda assim, tão selvagem.
Cada lua que se ergue é uma escolha. A escolha de não se mover do trono onde repousa,
finalmente em casa. Existem milhares de cheiros, perfumes que lhe escorrem pela capa vermelha
e se quedam no ponto com que findou o caminho que a trouxe ao lar. E no silêncio ecoam vozes.
Vozes quebradas. Exigências. Juízos. Semi-cerra os olhos, cansada. Ergue-se devagar, no espaço
esvoaçam corvos, mensageiros de infortúnios que esqueceu. Ouve-o. O rosnar do lobo alpha.
Ecoa na noite-eternidade-libertação. Enlaça-o para o sentir rosnar no peito. Sabe que a qualquer momento ele poderá libertar-se e correr, rasgar, ferir. Deixa que o pelo lhe acaricie o rosto.
(quando o relógio se une nas batidas da meia-noite, ele toca-a com mãos humanas, lambe-lhe a pele fervente, apaga o exterior, irrompe dentro dela, deixa-a repleta, memórias, sonhos, o fim e o princípio, a língua que a cobre, os lábios e os dentes marfim. ele respira-lhe no ombro, percorre-a, entra dentro dela a tesão a unir as linhas com que a amarra, escrava da felicidade que lhe inspira a verdade da noite)
Rosna. Até que as vozes se afastam, trementes. E ela sorri, com os lábios, os olhos, as mãos.
O perigo da mandíbula que não a fere. A força do ímpeto do amor.
Oferece-lhe sangue, néctar, cálices de carinho. Oferece-se. Lobo... Comunica com e sem palavras.
A linguagem que criou para se escrever no coração da besta-homem-sonho.

terça-feira, 1 de março de 2011

O sonho antes do sonho

És a minha noite.
Escondo-te na bainha da alma, na curva do destino, no momento perfeito.
Felino. E a pertença surge implacável, não na angústia da perda, não no medo, não no
meu coração quebrado, na coluna vergada, não na mão que aperta a garganta.
Não. Surge na amplitude dos teus braços a rodear-me.
A afagar-me. Na respiração com que incendeias a pele.

És a minha noite.
Fazes-me sentido, nas palavras, na ausência de palavras.
Absorvo-te. O cheiro. O sorriso.
Em ti sou pequenina. Menina. Em ti sou imensa. Mulher.
Conheço-te o coração, a mente, o corpo.
Reconheço-te. Amplifico-te.

És a minha noite.
O meu sonho antes do sonho.
Transmutas o tempo.
Redefino-me em ti. Esbato as linhas que nos separam,
diluem-se as fronteiras.
Reflicto-me na sombra perfeita do teu âmago.

És a minha noite.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Red Riding Hood

Sinto o teu coração inverter as cores com que gravei as ideias,
as noções e a ternura. Expludo e impludo na ponta dos teus dedos,
na curva dos teus lábios, na curiosidade erótica da tua língua.
O mundo fora das linhas do ser deixa de ter regras, indefino a máscara
com que me oculto dos outros. Deixo-a cair a teus pés.
Esta sou eu. A raposa. A fada. E o capuchinho. Vermelho rubro
de paixão com que me devoras. Submerjo nas tuas palavras,
nos silêncios, nas partilhas e nas emoções.
No caos da identidade questiono e requestiono as ideias, as conclusões,
as imagens e os sentimentos. E unifico-me.
Abarcas-me inteira. Queimas-me a pele e a alma.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Dualidade

Sempre fui duas pessoas dentro de mim mesma.
Sempre senti dois sentimentos ao mesmo tempo, sempre racionalizei o que sinto, sempre pensei duas coisas distintas, sempre tive raiva e pena, amor e desprezo, atracção e repulsa, branco e negro.
Com o tempo habituei-me a ser dual e a reconhecer que as duas mulheres que vivem dentro de mim jamais se sentiriam ambas saciadas e que era preferível deixá-las sentir a espaços.
E assim os anos foram passando. Houve momentos em que a divisão do meu coração era tão notória que poderia ter amado dois homens distintos pelo simples facto que elas não pensam e não sentem da mesma forma.
Mas subitamente ocorreu-me que talvez as pudesse reconciliar, talvez pudesse abraçá-las a ambas, a malícia e a inocência.
E isso lançou-me em mais uma crise profunda de identidade. Não existem espelhos suficientemente grandes onde possa espelhar-me completa. Não existem pessoas suficientemente profundas que possam compreender e aferir as duas linhas de pensamento que me queimam por dentro. Ou existem?
Eu quero avançar, eu quero recuar. Quero ser eu, quero ser a outra, quero gritar, quero o silêncio.
Estranhamente há algo que me diz que se não for agora que as assuma a ambas nunca mais o poderei fazer. Perderei o que há de genuíno em mim que é a dualidade.
As pessoas. As que esperam algo de mim. Que esperam coerência e coragem, que esperam que os meus dedos não tremam.
E as outras. As que me dizem que preciso mudar. Que não compreendem que a mudança está a ocorrer a um grau tão intenso que é impossível para mim neste momento mudar algo mais. E mesmo que fosse, mudaria? Porque há em mim uma mulher que me diz que não. Não mudaria, não, pelos outros não. Porque o resultado que está à vista agora já foi alvo de mudanças que vieram de dentro.
O que eu preciso não é avançar. É recuar ao momento em que quebrei o coração em dois para sobreviver entre os restantes.
Ontem entrei para dentro. Não antevejo que vá sair de dentro do meu âmago nos próximos tempos. A solidão fala comigo de igual para igual. E hoje, ninguém vive dentro da minha solidão.
Ontem, pela primeira vez em muitos anos fui à fonte e voltei sozinha. E as asas abriram-se perigosamente perto do momento em que ia estilhaçar.
Estranhamente há algo de poderoso na ausência do teu rosto. Hoje acordei com a certeza que a tua partida me fez bem. Já não são as tuas mãos que me percorrem a pele antes do momento da queda.
As fronteiras que dividem o meu ser dos restantes estão cada vez mais definidas.
Sempre tive medo do dia em que ia ter medo de sentir. Esse dia chegou finalmente.
Preciso que me abandonem. Que não sintam afecto. Nem desejo. Nem ternura. Nem que queiram que os meus olhos fitem os seus.
Existe uma acalmia poderosa na inexistência de expectativas.
Tenho medo de sentir. De me apaixonar. De errar. De perder. De não ganhar. De ser eu. De ser ambas. De descobrir mais uma vez que a dualidade do meu ser assusta quem me rodeia.
Das possibilidades. Das incompatibilidades.
Tenho o coração ferido da mágoa. A alma quebrada. E talvez nunca mais me recupere.
Eu já fui duas dentro de mim mesma e essas duas eram unas.
Preciso voltar a ser eu. Preciso voltar. A ser eu.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Sangue das veias

O reencontro com o passado prova-me que noutras épocas fui muito mais aguda e acutilante.
Tinha palavras dentro de mim que rasgavam a penumbra e iluminavam a escuridão.
Atravessavam o comodismo, traziam consigo o sabor acre da verdade.
E hoje tenho o peito cheio de lágrimas e a voz vazia. As pessoas que amei deixaram-se a si próprias, despiram as suas peles e metaforsearam-se em cópias distorcidas de si.
Hoje, nada mais me sobra que o medo de ser eu mesma. Querem ensinar-me a paciência. O valor da cautela e da prudência.
E eu quero explodir, implodir, acabar com tudo, transformar o caminho em pó, não quero paciência, não quero ser cautelosa, não quero ter medo, não quero nada, não quero sequer sentir, quero a acalmia que antecede o vulcão, quero não querer.
E os que partiram, voltam a espaços, assombrar-me os sonhos e a aparente serenidade.
Onde estás, afinal? Que angústias toldam o teu sentir? Ela não sou eu. É um facto linear. É um facto tão linear que me dá vontade de rir até não restar em mim nada mais que a fúria do ridículo.
Se estivesses aqui dirias que compreendes a ânsia de quebrar tudo o que construo, apagar tudo, recriar-me, abster-me, lançar-me de um abismo. Se estivesses aqui dirias que te arde a pele da mágoa. Se estivesses aqui dirias imensas coisas e não dirias absolutamente nada.
Ela não sou eu. Nem nunca será. E tu nunca mais serás tu. Porque a tua imagem só existe quando sou eu que te apreendo.
Se estivesses aqui sei que não hesitarias em deixar-me cair, em atirar-me todas as palavras erradas.
E ainda assim onde estás desperdiças a poesia, a alma, o corpo, a pele, a ânsia, o degredo, o abismo por algo que te faz um qualquer sentido. E quando me invades a psique dizes-me apenas "Ela não é a Sílvia.". Não. Não é. Eu garanto-te que te atirava de um abismo, que havia de te rasgar até sangrares, até sentires.
Conheço-te perfeitamente as dúvidas e as angústias. As palavras desnudam-te a alma. Assim como a ausência de palavras.
Hoje é dia de me atirar de um abismo e deixar o silêncio engolir-me. Hoje não estás aqui para me vigiar a queda e garantires que a última coisa que ouço é a tua voz.
Hoje não estás aqui. E no entanto, as veias pulsam-te devagar, algures onde estás. E sabes que hoje é dia de nos atirarmos para um abismo.
Chega de paciência. Chega de pensar. Chega de prudência. Chega de sorrisos e gargalhadas. Hoje chega. E o abismo lá em baixo a chamar por mim e a loucura a assomar-se. E eu aqui. Suspensa.
E tu, algures a sentir de forma distorcida. Se estivesses aqui dirias: "Ainda me vês?" Sim, ainda te vejo. E essa seria a imagem que teria na altura da queda.
Não esperes que alguém te compreenda. Ninguém o fará. Não esperes que te observem enquanto sentes o ar a passar-te no rosto e as asas a abrirem-se no preciso momento que julgas que irás terminar tudo. Não esperes que empatizem com a necessidade de destruir e no caos reencontrar o equilíbrio. Não esperes que ela seja eu. Nunca será.
Eu não espero.
Mas por hoje, não serei paciente. Nem certa. Nem terei medo das palavras e da dor.
Hoje vou lançar-me num abismo até sentir as asas a abrirem-se no momento que antecede o fim.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Sufoco

Mesmo quando desenho os caminhos, abro as janelas e deixo o pó sair, mesmo quando o sol brilha, mesmo quando chovem poemas, mesmo quando estou nua, mesmo quando a alma é um espelho, mesmo quando grito sem parar, mesmo quando os pensamentos são de tal forma agudos que rasgam a pele e nascem pelos poros, mesmo quando há tanta coisa a ser dita, mesmo quando a solidão é tudo o que resta, mesmo quando a esperança é um risco que não sei que quero correr, mesmo quando as palavras não chegam, mesmo quando sou transparente, mesmo quando sou branco e negro e vermelho e lilás, mesmo quando aponto a direcção do fim e do princípio, mesmo quando expludo e impludo as pessoas não fazem a mínima ideia da forma como sinto, das regras que regem o meu coração, dos ambientes da minh'alma.
Sinto-me sufocar.