domingo, 9 de dezembro de 2012

Momento

Sentiu-lhe o cheiro antes sequer de lhe vislumbrar a silhueta esquiva. Percorreu o espaço, o coração a ensurdecer-lhe os ouvidos. Ouvia-o rufar, implacável, enquanto lhe adivinhava o cabelo macio e o sorriso difícil. Encurtou o caminho em passadas largas, secas, onde não há espaço para dúvidas. Viu-a. Sempre tão ela, tão imensa na sua honestidade incompleta. Cerrou os punhos ao lado do corpo tenso, onde o sangue lhe trazia as memórias como punhais. Ela sorria-lhe e cobria-o de ternura. Adivinhava-lhe as impaciências, as inconstâncias. Tomava-a pela cintura, tão frágil no seu abraço. Tão fácil esmagar-lhe as linhas mágicas que lhe definiam os pulsos frágeis. E ainda assim, protegia-a. A pequena que lhe trazia o perfume das cores. Cobriu-lhe os dedos esguios com as suas garras, as suas mãos fortes. Construiu caminhos, viu futuros, dias onde o Sol seria quente e a Lua, a sua noiva. Ouviu-a, tantas noites a declamar os poemas que lhe nasciam dos lábios rubros. Decorou-lhe as fronteiras, marcou-a. Ela era dele. Engoliu em seco, a garganta áspera, um rosnado que lhe nascia no peito e morria no silêncio mudo. Tinha-a desenhado todas as noites em que a esquecia por entre o toque fantasmagórico de um relógio transparente. Tinha-a imaginado, algures, vergada de erros e ausência. Tinha dado todos os passos, como um viciado em recuperação. E ainda assim, nada o tinha preparado para finalmente lhe sentir o cheiro doce. Bebeu o perfume que era a pele dela, ainda tão longe, o formigueiro nos dedos de a tocar. Finalmente render-se ao frémito de a segurar pela cintura e trazê-la ao seu peito. Tinha-a deitada no seu peito, rendida. Exausta de amor e rendição. Percorria-lhe os cabelos com os dedos grossos, e transmutava-se milhares de vezes na presença dela. Uma incógnica e ainda assim uma certeza. Acariciava devagar a pele branca que queria tatuar com os dias em que ela seria apenas sua. Com os dedos falou-lhe dos anos que fariam, das gargalhadas que lhe ouviria quando lhe mudasse os humores bruscos. Planeou na sua pele os momentos infinitos em que lhe traria os astros para a ver sorrir. Queria dizer-lhe algo, vê-la virar-se para si. Queria ver-lhe o choque nos olhos. Queria sentir que finalmente a tinha encurralado, que não poderia mais evitar-lhe os olhos vigilantes. E no entanto, a sua presença era demasiado para os seus sentidos, para a privação com que os tinha controlado. Ela era, afinal, a explosão de cores e cheiros, um orgasmo de vermelhos e púrpura. Parecia-lhe tão inocente, tão exposta. Queria despedaçá-la. Queria protegê-la. Queria dominá-la, encostá-la numa parede, onde tudo o que visse fosse a luxúria que lhe consumia a alma. Agarrou-a e rodou-a no espaço. Pegou-lhe nas mãos nas suas e aqueceu-as. A sua pequenina. Tão etérea e tão real. Transmutava-lhe o pêlo em pele. E a pele em chamas. Queria entrar nela e ocupá-la, inteira. Ainda não o tinha visto. Continuava a sorrir sorrisos que não lhe chegavam às íris. Os olhos coroados de profundas olheiras que patenteavam as noites em que os pesadelos a dilaceravam por dentro. Viu-lhe a linha do pescoço que tantas vezes tinha saboreado com a ponta da língua. Viu-lhe as veias que percorriam as mãos mais magras. Mais ténues. Queria sentir-se vitorioso. Queria não sentir nada. Queria sobretudo não sentir o impulso selvagem de a resgatar do seu vazio. Segurava-a firme pela anca. Sua. Uma pertença que ultrapassava qualquer laço terreno. Reconhecia-lhe os pedaços. Escondia pedaços de si nas curvas do corpo que albergava a sua alma. Amava-a. Indubitavelmente. Finalmente, viu-o. Os olhos semi cerraram-se no choque que lhe queria produzir. E ainda assim, em algo mais. Um pedido. Um convite mudo de salvação. Viu-a dominar em momentos o sorriso que ameaçava escorrer-lhe dos lábios para o chão. Sentiu o peito contrair-se em espasmos de mágoa. Era tão fácil derrotá-la naquele preciso momento. Rasgar as fotografias de uma fuga imprecisa. Tinha planeado este momento ao pormenor nos dias em que se forçou a esquecer o nome que lhe queimava a língua. Tinha-a no colo. A cabeça reclinada no ombro, onde deitava uma vida que lhe cansava os ossos. Contava-lhe de fadas e sonhos vívidos. Sentia-lhe os dedos frios na sua pele. Queria aquecê-la no fogo que lhe ardia na alma. Murmurou-lhe ao ouvido: "Estou aqui e irei proteger-te. Não permitirei que nada ofusque o sorriso que te ilumina as pálpebras. Farei nascer o teu sorriso todas manhãs, irei guardá-lo todas as noites. Farei dele o meu Sol e as tuas mãos, a minha Lua. Irei amar-te, hoje e sempre." As pernas movimentaram-se por um milagre que não conseguiu definir totalmente. Roçou-lhe na manga, para lhe absorver o cheiro da pele. Ouviu-a dizer qualquer coisa, não sabia precisar o quê. Tinha uma tempestade na caixa toráxica e ela era o nome do furacão que lhe assolava as entranhas. Ela deixou cair as mãos vazias e o meio-sorriso com que fingia os dias e as noites. Fixou os olhos no chão, enquanto ele se afastava. Ele tocava-lhe o corpo e alma. Ela era a sua bandeja e o seu banquete. Sorria-lhe. Um sorriso que lhe nascia do âmago. Beijava-lhe os dedos, o rosto, os lábios. Não existia ontem, nem hoje nem amanhã. Apenas o momento. Sorria-lhe, extasiada. Viu-o a percorrer o caminho que o levava para longe. E tudo o que tinha nas mãos era vazio e memórias que lhe feriam as noites.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Outono

Debruço-me sobre o poço da verdade. Vejo os rostos, os sons esparsos de uma serenidade translúcida. A vida contorce-se, Sinto o peso a abater-se sobre os ossos frágeis dos joelhos. Pessoas que vivem vidas que não merecem ser vividas. Que escondem a mágoa e a tristeza em pequenas vitórias e mesquinhices. As vozes de hoje serão as vozes de amanhã. Sonhos inacabados, Visitas suspensas. Vidas desperdiçadas. As escolhas que se revestem de impossibilidade. Somos, afinal, o perpetuar de um destino. Fingimos todos os dias escolher o caminho poeirento que nos impele o corpo cansado para o amanhã. Atravessamos as mesms estradas, diezemo-nos realizados, satisfeitos, sorrimos. Hipócritas. Largados na mediocridade do ser. E o Universo avança, inalterado da dor que nos consome as vontades. Cubrimo-nos de nojo e impaciência. As mãos largadas no colo, a contorcerem-se. Espasmos de rebeldia que nos assomam. Adormecemos, adormecem-nos as capacidades, as ânsias e os trejeitos do infinito. Onde viveram as escolhas, hoje apenas se abandonam as perdas. Os terrores. As noites em que não se esconde que um povo inteiro parte, derrotado na sua dignidade em busca de um Sol e de um acolhimento que não encontram nas raízes da Terra Mãe. Partem, despojados de gana. E os que permanecem perdem a força para gritar a injustiça de uma doença maligna que nos verga perante a crueza de um vento norte que impede as sementes de brotar.

sábado, 29 de setembro de 2012

Estações

As estações passam, a eterna espiral do desassossego. As verdades que vertem na alma o licor com que embriagam os dias. Tatuagens da mente, frivolidades com que enganamos o passar da mediocridade. A alma é infinita, a força que escondemos as dúvidas, as desesperanças, os jogos que nos trouxeram à loucura. Arrumo suavemente as roupas, os momentos, finjo acreditar que amanhã o Sol nasce mais cedo. Aqui foram todos os inícios, todos os recomeços. Aconchego o coração na caixa prateada, ato-a com um laço vermelho rubro. Guardo-o. Cubro-o de silêncio e de ausência. Sussurro ladaínhas, deixo que as lágrimas lavem a humilhação, a curiosa capacidade de retomar o fio da minha vida. Acordo e adormeço envolta no fim. Eu ainda sou Eu. Ninguém poderá mudar o rosto, a quietude com que teço as linhas que torneiam a minha personalidade. Podem todos partir. Aqui eu sou eu. Este é o meu mundo. Onde posso gritar. As estações passam. Mas eu sou sempre igual a mim mesma.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Descoberta

Deito fogo às fotografias, aos sorrisos. Aos sonhos. Disseste-me "Ainda bem que és a última pessoa a sonhar." Fizeste questão em sufocar o sonho, em agarrar a raíz e arrancar a ternura do meu coração. Largaste o corpo, a carcaça, o despojo de mais uma fantasia. Mais um passo em falso, mais um recuo. Nada mais existe em mim que queira dar. Encerro tudo cá dentro. E grito. Finalmente. Grito até que me sangra a voz. Quebro tudo. Deixo que o nojo me cubra, me invada, como um espaço de nada. Toda eu sou um ponto final e uma negação. Cravo as unhas nas paredes. Renego as palavras. Finalmente, o silêncio. Finalmente, a noite. O profundo vazio que substitiu a mágoa. Eu deixo de ser eu. Vergo. Finalmente, derrotada. Os dias que não nasceram desaparecerem comidos pelas traças da realidade. Este sempre foste tu. E as vozes questionam-me. O motivo dos sonhos, das esperanças. Das ilusões com que ocultei a tua negligência. Grito. Grito. Grito. Grito. E nada existe e nada se cria. Tudo é revolta e náusea. E é a tua mão na minha coluna, a vergar-me o corpo cansado. Dizes-me: Não ouses jamais sonhar, não finjas que perdeste a visão, não digas nunca mais. Não ouses. Jamais. Sonhar. Grito. Descubro que para morrer não é necessário estar viva.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Linhas do futuro

Existem pessoas cujos objectivos nunca são alcançáveis. Ou então simplesmente não os definem para não sentiram que falharam. E no processo perdem-se a si próprias. Uma pessoa sem definição não é nada. É uma contradição e uma inexistência. Eu alcanço todos os dias o meu objectivo quando olho ao espelho e sinto vontade de sorrir. Quando sinto que o pouco que tenho é meu, foi construído por mim e pelas minhas escolhas. Quando à noite me viro e sinto o teu corpo ao lado do meu e sei que quando acordas procuras a minha anca. Definimos o nosso percurso quando entraste no meu espaço e me fizeste apaixonar-me por ti. Recordo como subitamente fechei os olhos e era o teu rosto que recordava. E de como isso me assustou. De como achei que nunca olharias para mim como mais que uma menina, como mais que um capricho. De como me entreguei e como foi tudo tão certo e tudo tão errado. Passaram-se tantos anos e foram tantos os recomeços. E finalmente construimos algo que é nosso. Acordo de manhã e sorrio-te e és tu e estás aqui. E eu sou ainda uma menina e sou já uma mulher e agarro aos poucos a ideia que é no teu ombro que repouso o rosto e é nos teus braços que esqueço o amanhã. E fizémos tantas escolhas e fomos tantas vezes embora. E como ainda me sinto tão assustada. E como todos os dias venço o medo, todos os dias construo-me e reconstruo-me, crio e recrio-me. À noite volto para ti. Perdi-me. Reencontrei-me. E ainda sou eu. Ainda digo as mesmas palavras, ainda me cubro, ainda sou tão só no meio de tanta gente. E tu aceitas-me. Tal como sou. Como sempre aceitaste. Como sempre traçaste as linhas do meu rosto com os dedos e me fizeste sentir amada. Com as minhas birras, com as minhas intensidades que te queimam a pele morena. Observo-te quando te levantas, os ombros largos, os músculos das costas. Os braços com que me apertas quando me encaixo em ti. O mundo lá fora é duro. É uma luta que nos verga tantas vezes. Construo devagar um lar onde repouso as expectativas, a rebeldia serena com que neguei as raízes. Fui diferente e fui eu mesma num mundo onde só existe uma certeza: a nossa verdade é sempre a melhor. Quando a verdade é apenas o som da lágrima que desce pelo queixo Existem pessoas cujos objetivos nunca serão os meus. Um dia sonhei uma vida. Era diferente da que tenho agora. E ainda assim era igual. Porque nessa vida existia um homem que me ama e me aceita errada como sou. Que abarca a minha intensidade e regressa todas as noites e nunca questiona que o seu lar é onde ferve a minha alma. E é nessa riqueza que o meu ser continua plácido. A saber-te aqui. A amar-te na felicidade que apazigua todas as mágoas. Existem pessoas que querem muitas experiências. Muitas outras pessoas. Muitos sucessos. E eu quero apenas acordar todas as manhãs e saber que sempre que olho o teu perfil me inundo de amor e vontade de encaixar o teu rosto nas minhas mãos. Tudo o resto, não importa. Tudo o resto é superável, é contornável, é passageiro. O meu objetivo é coleccionar as memórias onde estaremos juntos. A sorrir.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

I have a dream

Hoje é a noite dos sonhos. Das lembranças que não criámos, as fotografias que não existem guardadas no álbum antigo e poeirento. Afinal, diz-me o silêncio, nunca foste um passado. Sempre fui a incógnita dos dias que virão. Nas imagens que deveriam ter definido a minha infância, recordo-me tão mulher. Quando deveria ter sido apenas uma menina. Apenas mais uma criança, que os pais aconchegam. Não deveria ter feito tantas escolhas. Tantos recomeços. Tantas casas, tantos lares onde nunca fui eu. Tantas coisas. Tão poucas palavras. Tantas obrigações. Tanto desamor. Tantas promessas. Tão poucos desfechos. Nas fotografias que habitam as paredes, são apenas os olhos onde escondi todos os segredos que navegam a minha mente. A empatia. O dom que guardo no peito, os olhos que vêem mais do que deveriam ver. Gastos do tempo e do sal das lágrimas que nunca chorei. Sereno-me e o meu coração esconde-se na areia, por entre a água e som que acalma a mente inquieta. A alma rasga-se e divide-se, unifica-se e estilhaça-se, inúmeras vezes, milhentas, infinitas, repetindo um ciclo onde as pessoas chegam, sentam-se, sorriem e partem. Levam consigo pedaços de mim. Ângulos. Sorrisos que apenas elas me virão sorrir. A vida arrasta-me, sinto um dedo nas costelas, que fere, que marca o minuto em que o pé avança na direção do amanhã. Hoje é a noite da verdade. O cansaço abate-se finalmente na coluna e a verdade de um povo canta-me baixinho o fado do país em que a alma escolheu nascer. Por entre as brumas penso ver as pessoas que me deixaram. Os caminhos afastam-se e tocam-se apenas em breves eclipses. Amanhã, existirá o Sol que me queima a pele e que fere a íris cansada. Mas hoje, hoje é a noite da imensidão. Deito-me na areia e ouço-te. As palavras que não dizes, mas que te moram no coração. Pousas o braço na minha anca, guardas-me junto ao peito, sussurras-me ao ouvido. Ontem, hoje e amanhã é o teu corpo que amanhece junto do meu. É o teu corpo que abandono quando enfrento mais um Sol, mais uma jornada, mais um ciclo. Toco-te e tenho medo. Medo de saber que estás aqui. Medo do dia em que acorde e o teu corpo não repouse junto ao meu. Medo de finalmente aceitar que sou tua e nada mais existe para além de ti. Medo de me inundar de amor. Medo do tempo em que não estás, medo de um dia acreditar que nunca irás partir. O amor é a negação do Eu, a diluição da fronteira entre o aqui e o agora e o amanhã. O amor é a morte e a vida e o movimento do pulmão quando acorda. O amor é afinal, o medo e o medo que esse medo deixe de existir. O amor é único medo que é prazer. A tristeza da felicidade. Sol após Sol, rasgo a aceitação do teu Eu. Recordo os dias que partiste, os dias em que fingi que não sentia o teu cheiro, o teu espaço na cama e não eras tu. Um dia fui menina, mas nunca fui criança. Pesam-me as imagens dos dias que nunca existiram, as memórias que nunca criei. Espero-te, mulher. Deitada num areal, cansada do Sol e da mágoa, torpe de sentir. Sei que virás. Inundar-me. Abraçar-me e pedir desculpa pelo tempo que estiveste ausente. Espero-te. Sonho com os dias em que criaremos todas as memórias que a vida não me deu. Conquista-me. Reconquista-me. Toma-me. Sonha-me.

sábado, 9 de junho de 2012

A dívida

Quando era menina tinha sonhos e aspirações. Todos eles realizáveis. Não queria uma mansão nem um carro topo de gama, não me projetei casada com um milionário. E ainda assim tudo o que pedi para mim falhou redondamente. Ficou apenas um pouco aquém. Estudei o que queria quando quis. Esforcei-me. Caí e ergui-me muitas vezes. Mesmo nos dias em que tudo parecia vão e tudo era tão difícil. Fui eu mesma nos dias em todos os outros eram as expectativas dos que os que rodeavam. Fiz escolhas. Virei e revirei o mundo à minha imagem. Caí e ergui-me. Mais vezes ainda. E quando parecia que tudo era firme e tudo era terra, chovia e as águas levavam todos os alicerces. Toda a esperança. Cresci e estudei num país onde tudo o que nos resta é o nada. É o pouco que tornamos muito. Trago os meus no regaço, uma pequena relíquia de dias em que o Sol não me feria as pálpebras. Torno-me novamente noturna e o cérebro agradece. À noite os dias parecem mais fáceis. Como sonhos pardacentos que desaparecem por entre as nuvens escuras. Quando sinto o corpo parar, limpo a mente, arrumo as prioridades, choro lágrimas de papel. Ainda não é tempo de repousar. Apenas mais um passo, mais um dia, mais uma noite, mais um momento. Sobre os meus ombros descem as profecias que criaram para mim. Como se tudo o que sai das minhas mãos pequeninas seja o desespero com que grito as verdades que vergam os fracos. Existe uma sobriedade fanática na loucura. Parte da população esquece o que tornou a sua vida em álcool e drogas. Os restantes quebram, os músculos retesados, nem mais uma palavra. O medo que verga a espinha dorsal do nosso povo que aguarda a noite com a resignação da dignidade. E ainda assim, continuamos, fingindo-nos. Sorrindo onde não existem sorrisos. Inventando-nos em dinheiro que ninguém tem. Endividados das promessas tolas que a banca nos prometeu em tempos. Endividados, atrelados, cegos. Eu digo que vamos sobreviver a estes tempos. Mas as famílias estarão divididas, os amigos desaparecidos, os corpos lacerados, os corações rasgados, a mágoa. Iremos sobreviver mas o preço a pagar será imenso. Porque quem somos é uma imagem distorcida do que nos imaginámos em crianças. E alguém nos emprestou a máscara com que fingimos todo este tempo. E agora é altura de pagar. Com juros.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Regresso


A linha que separa o sonho da realidade dilui-se
na frieza dos dias. Na impossibilidade das fantasias.
A amargura com que arrastamos o corpo cansado.
E eu era sorriso. E eu era promessa e exatidão.
A linha que traça o rumo, o futuro onde apenas existe solidão.
A angústia de todos os momentos em que fui tua.
Sinto os teus braços a agarrar-me inteira,
a manter-me a sanidade suspensa na tua mão.
O erotismo com que traças a linha dos meus lábios.
Reencontro-me em palavras, o cheiro da tua pele, a ternura
dos dias em que fomos tão nós.
Respiras na minha nuca e murmuras-me ao ouvido.
Entrego-te o corpo, a alma, preciso que me vejas
sem máscaras. Apenas eu. Que me entregues as verdades
que são nossas. Quero que me digas que me vês pelo que sou.
Os teus braços a rodearem-me a cintura, os teus lábios no
meu pescoço. O erro. O erro que sempre me definiu.
Quero que me adormeças as angústias.
Que cubras as minhas pálpebras de ternura,
os meus seios de fome,
que entres em mim, que não reste mais nada.
Que não existam amanhãs nem ontem.
Que não existam adeus.
Murmura-me. Segura-me. Mantém-me enraizada.
Sê a minha âncora,  o espelho que devolve a verdade.
Diz-me que sou tua, possui-me.
Faz-me esquecer que um dia houve ausência.
Invade-me.
Não sejas metade do que somos.
Violenta-me em palavras, prova-me que todas as certezas
são menos do que podemos ser.
Quero palavras. Quero que me seduzas.
Quero letras, hoje não quero silêncio, quero que repouses a tua mão
no meu rosto. Que beijes cada pedaço da pele que um dia ousaste
abandonar. Quero poemas e excentricidades.
Quero voltar a ser eu.

terça-feira, 13 de março de 2012

O epicentro da explosão

Reencontro-me na ânsia dolorosa de ouvir a tua voz.
As palavras desaparecem como pegadas na areia.
Do meu coração nascem pontes que levam um eco
até onde o teu corpo repousa. Ouves-me. Como sempre.
Por entre as nuvens e o Sol que brilha quente.
Preciso-te, a força da impacienciaa consumir-me as certezas.
Procuro-te nos rostos, nos momentos que me assolam na noite,
nos soluçosque me atravessam a garganta.
Procuro-te. A febre, a necessidade, a fome.
Sinto-te por entre os dias, por entre as omissões,
os gritos, as negações, as traições, o final e o recomeço.
O eterno ciclo da tua mão na minha nuca, a afagar- me.
O meu sorriso. Difícil. Sinto-te a presença,que me afoga em poesia.
Tu que apenas és tu quando estás em mim.
Os teus dedos enterrados no meu cabelo,
a extensão da tua raiva, a mágoa, a tua eterna insatisfação.
Cobres-te de silêncio. A poesia, minha. A explosão. Eu. O orgasmo.
A proibição, o perigo, o amor que é incomportável.
Meu. O que roubei, o que conquistei, o que rasguei de ti.
O mundo gira sobre si mesmo e as sombras
extendem-se pela margem de sanidade.
As palavras que escorrem pelos meus olhos. Sei-te.
Os sonhos voltam a espaços,agarro o destino, tu e eu,
as faces retorcidas de uma mesma alma.
Os sonhos finalmente meus. O rosto finalmente sereno.
Abandono-te no epicentro da explosão.
Em mim todas as palavras, todos os momentos, todas as inocências.
A tua mão no meu cabelo. Queda.
Os teus dedos finalmente petrificados pelo medo.
Finalmente mudos.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Morte em Vida

A vida ensinou-me que existem lutas que não merecem ser escolhidas.
Percorres o teu caminho longe dos meus olhos vigilantes.
O que fizeste ao teu Eu, debaixo de quantas camadas de medo o escondeste, não sei.
Sei apenas que não nasci para aplaudir a morte em Vida.
Tu deixaste de ser Tu para seres uma Sombra.
Cheiro o medo em ti.
E eu não nasci para te ver morrer, por escolha, enquanto ainda respiras.

"We were born to die"

A vida enrola-se em nós como uma serpente demasiado bela.
A tentação que nos respira no pescoço.
Mesmo quando tudo o que queremos é respirar pausadamente.
Não queremos palavras. Nem sonhos. Todas as nossas forças são
para sorrir e esconder a solidão, a podridão que nos mora
nas sombras. Fingimos não ver o que tiram de nós.
Temos linhas que nos forçam as pernas,
amarras que nos forçam a ternura e a transformam
em mágoa. Corvos que se deliciam da nossa carcaça.
Mastigam a nossa imperfeição, deliciados com a delicadeza
macabra da nossa pele tão branca. Descobrem-nos
as incertezas, a voz que falha perante a estrada que se adivinha.
Dizem-nos ao ouvido "tenho-te presa pela vida adulta que escolheste.
pelo percurso que te trouxe até mim. és um ponto final. uma entre muitas.
já não és tu noite dentro. a poesia morreu dentro de ti"
E as lágrimas escorrem-me pelos seios, estou nua, estou só.
Algures chegam-me as vozes dos que dizem amar-me.
Quando amar-me é por si só uma batalha.
Eu sou tanto e ainda assim tão menos que humana.
Eu que me curvo para as crianças e os animais e que cuspo
na cara dos que podem. Eu que me recuso a ser menos, a vergar-me
aos que violam. Eu que me recuso a arrastar os que me consideram.
Eu que poderia ser um rasgo de luz mas que quero ser uma explosão.
E as lágrimas descem-me pelo ventre.
Finjo-me. Sorrio com o rosto contorcido e sei que os meus olhos
não mentem. Eu nunca me minto. Eu sei que os outros me vêem
e pensam saber tudo. Pensam ter-me numa trela.
Finalmente muda. Finalmente queda. Finalmente um final.
Sem esperança, sem lágrimas, sem sal, sem explosões.
Só o peso da responsabilidade. Os que escondo dentro de mim,os seus sonhos.
E o meu mundo é o mundo onde se resguardam e murmuram-me que eu não posso cair,
não posso terminar. Eu sou, afinal, a que move. A que faz mover.
A que grita por entre o silêncio.
E as lágrimas secam-me na pele, rasgam-me a alvura do rosto.
E sinto. A explosão. O grito que me sobe pela garganta.
E mudo. Revolto-me. Rasgo tudo.
As amarras, os planos, as expectativasdos que pensam ter o pé no meu pescoço.
Grito e o grito ecoa por entre as marés da vida.
E encolho os que pensaram ter-me finalmente derrotada.
Eles mingam perante a fé imbalável que tenho na força que move a minha mente.
Eu sou Eu. Eu serei sempre Eu. Sempre. Uma fada escondida por entre os humanos.
Abro as asas demasiado tempo recolhidas na coluna.
Grito e sabem que o camnho não é este.Não é por aqui.
Nunca por onde tentam silenciar-me o coração.
E os que me amam sorriem finalmente com a ternura que se impulsiona
como uma onda que os traz até mim.
Tocam-me a medo, os olhos enormes que me emolduram o destino.
Eu serei sempre a que impulsiona. Eu serei sempre
a Empática, a Revolucionária, a Serena, a Última, a Primeira.
Nunca serei menos do que Eu para que os que são menos do que eles mesmos
se possam finalmente sentir em paz com o coração que lhes grita
que o fazem é errado. Eu nunca fingirei que não vejo a violação,
a exploração,a podridão, a mentira e o engano.
Nunca fingirei. Nunca.
Eu nunca serei o meu próprio ponto final.