sábado, 26 de junho de 2021

(re)Encontro

Ele pousou o copo na mesa, perplexo. Não a imaginou ali. Imaginou-a em vários momentos, mas nunca fortuitamente. Ela sentou-se sem pedir licença. Invasiva. Parecia desenquadrada naquele ambiente e no entanto, continuava a segurar o olhar dele com o dela. Ele quis falar, mas teve receio de quebrar o feitiço que a trazia ali. "És o meu escritor favorito". Ele fitou-a e pensou o que responder a uma frase que lhe soava como um ataque. "Não tens escrito". "Não, não tenho". "Porquê?". Incisiva. "A escrita deixou de me fazer sentido". Ela inclinou levemente o rosto e ele viu dezenas de expressões a transmutar-lhe os traços. "Não acredito que tenhas abandonado as palavras". "Podemos dizer que as palavras é que me abandonaram". Os lábios dela formavam uma linha teimosa. Ele perguntou-se como ela acreditava que podia surgir duma névoa e perscrutar-lhe a alma, como se fosse um direito adquirido. "As palavras já não me fazem sentido" Os olhos dela perderam-se numa linha distante e ele sabia que ela estava a debater-se se o abria para procurar as palavras que ansiava. "Não tenho nada que te possa dar". "Recuso-me a acreditar que te tornaste mudo, que não tens textos a rasgaram-te os limites, recuso-me a acreditar!" Onde estiveste? - queria agarrá-la e sorver dela as palavras. Queria enterrar os dedos nos braços dela e trespassá-la com pontos de exclamação. Sentia a frase sufocá-lo, és feliz? És feliz? "Perdoa". Ela olhou-o, os lábios entreabriram-se para retorquir uma nova exigência mas suspenderam-se. Ele queria alcançar a mão dela e provar a si mesmo que não estava a delirar. Como se o tivesse pressentido, ela colocou as mãos perdidas no colo. Ficaram em silêncio e ele suprimiu a ânsia de a percorrer a pele. Ela parecia-lhe tão igual e simultaneamente tão diferente. Sabia-a, como duas linhas que correm paralelas até convergirem numa explosão e de novo se espelharem numa eternidade. "Pareces diferente" murmurou ela. "Pareço?" Ela sorriu. E ele sentiu. O frémito das palavras a insurgirem-se contra o peito. Queria dizer-lhe que se ela ficasse aqui, se ficasse tão perto que o ouvisse sussurrar, as palavras lhe renasceriam nos dedos. Queria fazer-lhe promessas que ambos sabiam que ele não tinha como cumprir. Queria despi-la e possuí-la, faminto de todas as noites em que dormiu sozinho. "Achas que algum dia voltarás a escrever?" "Duvido." "E o que faço com as saudades das tuas palavras?" "Arrumas numa gaveta onde as esqueças, dobradas" - apeteceu-lhe sorrir quando viu a postura corporal dela a mudar, como que a antever a desilusão. "Sabes que não funciona assim." "Sei." A pergunta queimava-lhe a língua e estremecia-lhe o coração - És feliz? Mas a boca permaneceu muda. Os olhos presos nos dela, inevitáveis. "E se eu tivesse ficado, terias escrito?" Sim, teria. Teria escrito e teria fingido que todos os poemas não eram de alguma forma odes ao veneno que era ela a correr-lhe nas veias. Queria prendê-la num abraço e extrair as palavras como uma corrente que amarra o coração. Teria escrito textos que apagaria quando a madrugada terminasse e com ela o feitiço do corpo nu dela nos lençóis. Teria imaginado enredos cujo final seria sempre uma ausência. Ele não sabia ficar. Mas isso não impedia a fome que o impelia a agarrar o coração dela com as mãos e apertá-lo até o quebrar em pedaços que nunca mais seriam encaixados da mesma forma. "Não queres mesmo que responda a isso". "É melhor não". Viu-a levantar-se, o rosto escondido em brumas. Queria pedir-lhe que ficasse, que se deitasse nua nos lençóis até que as palavras lhe brotassem do peito. Queria dizer-lhe que todos os poemas eram um mesmo poema. Queria aprender a ficar. Quando a noite findou perguntou-se se ela tinha estado mesmo sentada ali ou se a tinha sonhado.