sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A lenda V

Voltou ao templo. Ela sorria-lhe, como sempre lhe sorria. Tão perfeitamente coerente.
Puxou-a para si e segurou-a pelos cabelos, com força.
Ela olhou-o confusa. Sim, sim... Era ele que a tinha e que a dominava. Rasgou-lhe a roupa.
Aguardou que chorasse. Que dissesse o quão monstruoso era. Aguardou, o coração estilhaçado.
"amor" - ouvia-a arquejar - "que te fizeram? quanta dor consegues albergar no espaço limitado do teu corpo? quem rasgou a tua garganta?"
E ele sentiu-se compelido a contar-lhe todas as desventuras, todas as acusações, todas as máscaras, todos os pesadelos. Lambeu os lábios, fê-la recuar, tinha fraquejado, sabia que sim, sabia que ela o pressentiria.
Entrou nela, rebentou-a de tesão e lamento.
Só desta vez, prometeu a si mesmo. Só agora, só este pedaço de luz, só este sorriso.
Não sabia que sentimento era aquele que lhe transbordava da alma para o corpo, do corpo para o sexo, do sexo para o esperma. Não sabia que amor-demência-necessidade era aquele.
Amanhã não voltaria. A luz dela ofuscava-o, a exigência do seu amor.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

A lenda IV

Chegou a casa. Deitou-se na cama e aninhou-se sobre si mesmo, esgotado, esgotado de sentir num grau de intimidade e intensidade que não suportava.
Iria esquecer a criança. A mulher. Os sonhos. O cheiro dela. A voz. O orgasmo.
Iria matá-la dentro de si.
Não suportava o laço que lhe pesava nos ombros, ela tão pequena, tão frágil, tão sua. Poderia estrilhaçá-la.
A ideia excitava-o, apelava à sua escuridão. Poderia apagar a luz do mundo. Queimar de si todo e qualquer vestigío de inocência.
Seria livre, completamente livre, não voltaria para ela, a ela.
Não queria que ela o amasse, não a queria. Não, não a queria.
Ela iria aprender que uma criatura de luz não fecunda a amargura fétida que espreita na escuridão.
Iria rasgá-la, iria magoá-la e ela partiria, para um qualquer lugar de luz que ele não sabia.
Deixaria de sentir a sua respiração, o seu semblante. Deixaria de procurá-la em mulheres que não o conheciam. Deixaria de estar enraizado.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

A lenda III

Os meses roeram-lhe a carne.
Nos momentos que vagueava o mundo dos sonhos, os olhos ainda turvos de vigília podia jurar que a ouvia. Longe. As lágrimas e a angústia.
Mas ela era afinal uma criatura da luz. Viveria na luz. Continuaria a crescer na luz. Numa luz que ofuscava.
E ele não a iria tocar. Não a iria tornar numa sombra da sua mente estilhaçada. Ela era, afinal, o último reduto de inocência no seu mundo fantasma.
Não sabia em quantas camas acordaria mais. Não importava.
Os meses roeram-lhe a estrutura até que regressou faminto. Faminto de luz e de esperança, do sorriso e das palavras e da forma como ela o olhava.
Viu-a no momento que pisou o templo. Jazia no banco de pedra.
Abraçou-lhe o corpo frio e lambeu-lhe os lábios. Tocou-a. Escondeu o rosto no colo que tanto ansiava e ela não falou.
Suspendeu a respiração e procurou-a, desceu nela, na alma de luz e encontrou pedaços da escuridão que era sua. E soube-a.
Cobriu-lhe os lábios, desejou-a como nunca tinha desejado uma mulher, consumido de fome e desespero.
E ela abriu-se, deixou que os dedos se lhe enterrassem no cabelo.
Ouviu-a murmurar: "sabia que vinhas. virás sempre. quando não estás a vida esvai-se de mim. não amo os humanos, meu amor. não os amo, não os quero, minha criatura de escuridão. rompe-me, alimenta-te de mim, faz-me tua".
Quando a fitou já não era uma criança. Era uma mulher, uma mulher quebrada, una com a seiva que lhe corria na alma.

domingo, 15 de novembro de 2009

A lenda II

Volveram-se meses até que finalmente voltou. Voltou, hesitante, ao templo. Percorreu-o, com vozes a assombrá-lo, vozes que lhe diziam que a pequena criança-fada não estaria porque nunca existiu.
Quando finalmente se aproximou dos portões viu-a. Tão etérea como a recordava nos minutos que antecedem a morte da noite.
Tocou-lhe timidamente numa madeixa de cabelo. E ela falou novamente. Falou de infâncias, de mundos perdidos e de eternidades.
Deixou que falasse, deixou que falasse até que lhe soubesse de cor os lábios, os traços leves, as mãos brancas.
Deixou que falasse até que a noite anunciasse a chegada e partiu.
Nessa noite bebeu. Bebeu até esquecer a voz e o sorriso, as mãos e o colo. Não a queria dentro de si, a imagem viva de uma entrega que não sabia e não era possível.
Os dias consumiram-lhe a alma. Vieram mulheres. Como sempre vinham, atraídas pelo seu cansaço e pela solidão.
Esqueceu-a.

sábado, 14 de novembro de 2009

Lenda

No início e no fim dos tempos, viveu um rapaz de olhos mar-mágoa.
O rapaz vivia numa aldeia pobre. Onde as pessoas viviam do pão e dos laços frágeis que os uniam. Pessoas que não tinham tempo ou vontade de amar. Ou de descobrir o que é sentir.
Há noite, quando a lua se erguia, o rapaz ouvia as palavras que não eram ditas, pincelava quadros que traziam verdades que ninguém compreendia.
Apenas ele.
De manhã, acordava com as mãos trementes e os lábios murchos. Ele não queria ver tão longe, saber tanto, esconder o mundo nas mãos.
Viveu a sua infância negada. Viveu e com a idade aprendeu a esconder todas as verdades que ainda trazia nos bolsos.
Até que, jovem adulto, num de muitos dias em que passou junto ao templo ouviu cânticos.
Aproximou-se e o coração inundou-se de um sentir que nunca tinha sentido antes.
E viu-a finalmente. Era pequena e frágil. E forte. Era um começo e uma espiral.
Aproximou-se lentamente. A pequena sorriu-lhe. O sorriso que via nos sonhos que sonhava noite dentro. O sorriso que só ecoava num coração.
Poderia ter-lhe tocado e atravessar-lhe as veias, conhecer-lhe os recantos da mente. Poderia tê-la enlaçado de todas as formas que conhecia. E as que ainda não tinha descoberto.
Finalmente ela falou. Falou de brumas e infinito, falou-lhe das ânsias das estrelas, da dor que é nascer e respirar.
Falou-lhe e o rapaz limitou-se a fitá-la, atónito. Não sabia quem era nem quem trazia gravado na pele.
Poderia ter-lhe contado das suas viagens pelo limiar da verdade. Poderia ter-lhe falado das melodias que entoava na solidão. Poderia tê-la segurado contra si, poderia ter-lhe sentido o fluxo do sangue.
Não disse uma palavra. Fitou-a apenas até chegar a hora de partir.
No dia seguinte tentou não a lembrar. Afogou-se no trabalho, nas máscaras das pessoas da aldeia, nos seios fartos das raparigas que suspiravam pelo seu olhar mar-mágoa.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Cinza de Inverno

Existe Inverno no mais profundo do meu ser.
Inverno que se acomodou entre a minha voz e o rasto dos meus olhos.
O frio entorpece-me as memórias, os momentos em que estás e todos os outros em que carrego a tua ausência.
De manhã já não é o teu nome o primeiro a acordar-me dos sonhos. Nem a mão benevolente que me adormece.
Inegavelmente a névoa da distância encarrega-se de minar a esperança e o sorriso.
Hoje, pesas-me na alma como nunca. A dor atravessa as dimensões e alberga-se no coração.
Lentamente, a chama que me instiga a procurar-te nos outros, nos menos genuínos, nos grotestos traços de ti, extingue-se.
Não existem emoções que não sejam fugazes. Não existem homens que me prendam, que me fixem.
Não existem dias diferentes. Não existe cor no frio do Inverno que me enlaça.
Nem mesmo tu. Nem mesmo tu me prendes verdadeiramente ao teu semblante.
Nem mesmo tu, meu amor...