domingo, 31 de julho de 2011

A luta

Um pé e uma pegada,
um primeiro passo, um grito, um estilhaço.
Somos pedaços pequenos da alma de Deus
que nos observa seco das nossas quezílias
mesquinhas. Deus finge-se adormecido
enquanto nos queimamos, vendemos tudo
o que temos, as mais pequenas linhas de prazer.
Ensinam-nos que o orgasmo não é verdadeiro
se o gritarmos aos vizinhos, ensinam-nos que o grito
está em comprarmos a roupa certa, está no relógio,
no produto novo. Está no consumo, agarramos tantas
coisas quanto conseguimos e sorrimos.
Estúpidos, somos estúpidos, somos todos
tão estúpidos e é isso que querem
enquanto se lavam nas nossas lágrimas.
No esforço do nosso trabalho.
As palavras com que rasgamos as mentalidades,
os sorrisos que negamos porque estamos demasiado
ensombrados para sorrir.
Matam-nos as vontades e os quereres,
dizem-nos finalmente que tudo o que somos é errado.
Padronizam-nos o pensar e a mente. Fazem-nos crer
que a libertação está na droga que nos aliena,
na bebida com que afogamos o dia que nos correu
tão mal, foda-se, tão mal.
Não aguentamos nem mais um passo,
nem mais uma facada nas costas,
nem mais um sorriso fingido que nos entregam
como uma maçã envenenada.
Que nos rebenta nos tímpanos.
Procuram-se noutros rostos, nas mãos que se encrispam.
Procuram-se na ternura inacabada.
E pensam-me tão distante e alienada como todos os outros.
Os que se drogam, os que morrem porque não querem estar vivos.
Os que se entregam finalmente e num último grito
lançam-se no abismo. Voltam à fonte. E é essa a liberdade
última ou não? A morte escolhida. A que inflingimos a nós próprios.
Mas é esse também o maior desrespeito
pela carne que nos cobre os ossos
e que eles mastigam, filhos da puta.
Genuínos filhos da puta
que nos amarram os pés, as mãos,
nos têem por uma trela.
Tudo é ruído. Desaprendemos o silêncio,
a paz que nasce numa onda
que não ameaça e é suave.
Desaprendemos a estar, a ver um filme, a ouvir a música
e afinal aquela que está pior que nós está bem fodida.
Não, não somos nós, não, não, não
não é o nosso sangue que alimenta os famintos,
os genuínos filhos da puta.
Não, não é o nosso suor que faz mover esta roda infinita.
Não é a nossa depressão que nos impede de nos revoltarmos.
Não é a nossa incapacidade de mudar, de gritar.
Não, não, não, aquela é que está mal
porque vergou, finalmente morreu. Finalmente
acabou. Mas ela criou algo. Algo que é intemporal.
Algo que é arte. Ela já não está para alimentar genuínos.
Mas eu não vou vergar. Não vou morrer, nem ser mártir.
A arte há-de continuar. A arte há-de existir. E eu hei-de gritar
até não ter voz. Hei-de ser uma fada em pele humana.
Hei-de quebrar os espelhos em que se refletem.
Eu ainda consigo continuar. A escolha existe.
E eu escolho todos os dias viver.
Rodeada de genuínos. Filhos da puta.
Mas não. Ainda não. Ainda não me quebraram.
O meu sorriso não nasce de nada que me tentam vender.
Eu só compro o que quero. E não compro a tua felicidade estúpida.
Não compro fingimentos. Não compro sorrisos amarelos.
Sozinhos somos pequenos. Sozinhos somos chamas
na escuridão. Mas juntos temos um movimento de mudança.
Muda. Grita. Rasga. Manda alguém foder.
Porque eu vejo. Eu ainda vejo. Eu ainda grito.
A minha carne alimenta os fracos, a minha ternura, o meu sorriso.
A alma, essa, é minha. E os sonhos. E as linhas vincadas
que traçam as arestas fodidas da minha personalidade.
Abraça-te. Amanhã é outro dia.
Mas é hoje que tens que lutar.

3 Comments:

Rui Mendes said...

Gostei muito.

Beijinhos.

P.S: Já tinha saudades de vir a este espaço :)

Tiago said...

Ainda existe algo genuíno e puro neste mundo. Tu és sem dúvida um algo assim.

Daniel Aladiah said...

Querida Sílvia
Mias um dos teus arrepios de sangue vertido na pena com que escreves. Não desistas de lutar, malgrado tudo ser como dizes...
Um beijo
Daniel