domingo, 24 de outubro de 2010

Cordão umbilical

No início dos tempos, no fio que conduz a eternidade,
o teu rosto era espelho do meu.
Reflexo perfeito da minha ternura,
contorno da infinitude do meu ser.
Na primeira palavra que seduz
o olhar, na luz que emana do âmago,
os teus olhos eram os meus olhos
e o teu sorriso era desenhado com os meus lábios.
Tu eras igual a mim. Os mesmos sonhos, os anseios
que nos curvavam, a intensidade dos desejos.
E nascemos neste mundo ligados,
a tua dor a minha dor, a tua mão o meu percurso.
Um dia amanheceu mais tarde e tiveste medo de ser tu.
Os traços que te definiammeu esbateram-se,
e as vozes que assombravam o teu destino ergueram-se
imbatíveis. Aprendeste a não ser tu, a enganar e a ser fraco.
Aos poucos adquiriste outras fotografias, outras mãos,
outros sorrisos pálidos, rostos falsos,
matéria terrena com que cobriste as infantilidades
e a ingenuidade. Tu deixaste de ser eu. E eu vi-te partir.
Voltavas, inevitavelmente, com as marés violentas da necessidade.
Afinal, dizias-me tu, eras ou não o coração do meu peito?
O pulsar do meu sangue. Eras ou não as cores dos meus sonhos?
Afogavas as feridas no bálsamo da minha pele,
reaprendias os caminhos da minha alma.
Era tão fácil, tão intuitivo, tão amor-paixão-cadência.
E eu desenhava magia na curva do teu braço.
Apagava de ti os vestígios de febre e da doença de não
seres tu. Perdeste-te assim, nas viagens que fazias
ausente da minha voz e do olhar vigilante.
Perdeste-te de mim, tornaste-te parte de outros,
assumiste máscaras, corrompeste os sonhos, a ternura,
o amor. Perdeste-te de ti. És incompleto.
Guardo-te ainda, a parte de ti que é tão minha que jamais poderá
ser de alguém. A parte de ti que não é tua para venderes,
para leiloares à facilidade de quereres abarcar o nojo
que é este mundo. Guardar-te-ei para sempre.
Escondido de ti próprio. Esse pedaço que rodeia o cordão
umbilical que nos une. Deixarei que sejas incompleto.
Deixarei que te destruas, que destruas a parte de mim
que vive dentro de ti. Deixarei que semeies a mágoa,
que quebres o meu sorriso.
A única verdade que me ensinaste
é que não precisamos ser unos para avançar.
Eu avanço sozinha. Com parte de ti escondida. Adormecida.
E dessa verdade construo um caminho.


Encontramo-nos no fim dos tempos.

1 Comment:

Anónimo said...

poético. Lindo