segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Abraço

Acordo de noites mal dormidas
e tento esquecer o batimento
cardíaco que reverbera na ausência.
Um eco fantasmagórico dum futuro que nunca foi.
Uma impressão que apaguei dos lençóis.
Se pudesses, não me terias conhecido?
Se o Sol não brilhasse, se a Lua não fosse um astro.
Se tudo fosse linear e previsível.
Um poema perfeito, sem dor, sem mágoa,
sem sentimentos em explosão.
Se pudesses, não me quererias inverter
as cores? Curar os olhos febris?
Tolher-me as mãos com que aperto
a maçã de Adão na minha mão de Eva.
Se pudesses, nascerias noutro mundo,
outra pessoa, outro nome, outro Eu.
Outra, outra, outra?
Quem serias tu afinal, sem dor,
sem o teu sangue a escorrer das paredes
para cálices estilhaçados.
Quem, afinal?
Noutro mundo, talvez o teu coração
sinta o meu. E por segundos
batam em uníssono. Talvez
estejamos felizes e inteiros.
Nesse outro mundo, talvez existam crianças
nas nossas fotografias. A sorrirem,
suspensas no meu seio.
Talvez eu tenha as respostas
e não existam mais perguntas.
Talvez tenha aprendido a escrever
sem arrancar o coração
pelas costelas.
Eu só sou eu quando as palavras
estilhaçam a máscara, o sorriso,
rebentam as cicatrizes.
Se pudesses.
Se pudéssemos.
Se as noites nunca acabassem, se os silêncios
fossem gritos. E o mundo não fosse tão
estupidamente complicado.
Se pudesse, saía de dentro de mim
e deixava-me a secar,
até nada mais restar
de quem sou. E talvez aí renascesse
para além dos meus sonhos e desejos,
das minhas imperfeições,
dos meus ossos e da degeneração
lenta mas imparável do meu corpo.
Se pudesse, despia o meu corpo
só para me abraçar.

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