segunda-feira, 16 de novembro de 2009

A lenda III

Os meses roeram-lhe a carne.
Nos momentos que vagueava o mundo dos sonhos, os olhos ainda turvos de vigília podia jurar que a ouvia. Longe. As lágrimas e a angústia.
Mas ela era afinal uma criatura da luz. Viveria na luz. Continuaria a crescer na luz. Numa luz que ofuscava.
E ele não a iria tocar. Não a iria tornar numa sombra da sua mente estilhaçada. Ela era, afinal, o último reduto de inocência no seu mundo fantasma.
Não sabia em quantas camas acordaria mais. Não importava.
Os meses roeram-lhe a estrutura até que regressou faminto. Faminto de luz e de esperança, do sorriso e das palavras e da forma como ela o olhava.
Viu-a no momento que pisou o templo. Jazia no banco de pedra.
Abraçou-lhe o corpo frio e lambeu-lhe os lábios. Tocou-a. Escondeu o rosto no colo que tanto ansiava e ela não falou.
Suspendeu a respiração e procurou-a, desceu nela, na alma de luz e encontrou pedaços da escuridão que era sua. E soube-a.
Cobriu-lhe os lábios, desejou-a como nunca tinha desejado uma mulher, consumido de fome e desespero.
E ela abriu-se, deixou que os dedos se lhe enterrassem no cabelo.
Ouviu-a murmurar: "sabia que vinhas. virás sempre. quando não estás a vida esvai-se de mim. não amo os humanos, meu amor. não os amo, não os quero, minha criatura de escuridão. rompe-me, alimenta-te de mim, faz-me tua".
Quando a fitou já não era uma criança. Era uma mulher, uma mulher quebrada, una com a seiva que lhe corria na alma.

0 Comments: