sábado, 14 de novembro de 2009

Lenda

No início e no fim dos tempos, viveu um rapaz de olhos mar-mágoa.
O rapaz vivia numa aldeia pobre. Onde as pessoas viviam do pão e dos laços frágeis que os uniam. Pessoas que não tinham tempo ou vontade de amar. Ou de descobrir o que é sentir.
Há noite, quando a lua se erguia, o rapaz ouvia as palavras que não eram ditas, pincelava quadros que traziam verdades que ninguém compreendia.
Apenas ele.
De manhã, acordava com as mãos trementes e os lábios murchos. Ele não queria ver tão longe, saber tanto, esconder o mundo nas mãos.
Viveu a sua infância negada. Viveu e com a idade aprendeu a esconder todas as verdades que ainda trazia nos bolsos.
Até que, jovem adulto, num de muitos dias em que passou junto ao templo ouviu cânticos.
Aproximou-se e o coração inundou-se de um sentir que nunca tinha sentido antes.
E viu-a finalmente. Era pequena e frágil. E forte. Era um começo e uma espiral.
Aproximou-se lentamente. A pequena sorriu-lhe. O sorriso que via nos sonhos que sonhava noite dentro. O sorriso que só ecoava num coração.
Poderia ter-lhe tocado e atravessar-lhe as veias, conhecer-lhe os recantos da mente. Poderia tê-la enlaçado de todas as formas que conhecia. E as que ainda não tinha descoberto.
Finalmente ela falou. Falou de brumas e infinito, falou-lhe das ânsias das estrelas, da dor que é nascer e respirar.
Falou-lhe e o rapaz limitou-se a fitá-la, atónito. Não sabia quem era nem quem trazia gravado na pele.
Poderia ter-lhe contado das suas viagens pelo limiar da verdade. Poderia ter-lhe falado das melodias que entoava na solidão. Poderia tê-la segurado contra si, poderia ter-lhe sentido o fluxo do sangue.
Não disse uma palavra. Fitou-a apenas até chegar a hora de partir.
No dia seguinte tentou não a lembrar. Afogou-se no trabalho, nas máscaras das pessoas da aldeia, nos seios fartos das raparigas que suspiravam pelo seu olhar mar-mágoa.

1 Comment:

fs2 said...

Infelizmente parece-me ser mais fácil viver no limiar da verdade e suportar o peso duma grande mentira. Resta saber até quando se consegue aguentar.